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Crítica | Deus da Carnificina

por Ritter Fan
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estrelas 4

Zachary (Elvis Polanski) acertou, com um galho de uma árvore, seu colega de escola Ethan (Eliot Berger), depois de uma aparente altercação em um parque no Brooklyn. O resultado da briga é o convite feito pelos pais da vítima aos pais do agressor para uma conversa civilizada, de alto nível, no apartamento dos primeiros.

Nos dias politicamente corretos de hoje, em que um ato que poderia ser visto como trivial e parte das dores do crescimento de jovens de 11 anos não pode passar às claras, a premissa que antes pareceria improvável, torna-se bastante plausível. No entanto, o convite em si somente tem como objetivo juntar dois casais sob o mesmo teto, como uma espécie de amostra da civilização ocidental, para ver o que acontece.

Essa é a proposta de Roman Polanski em seu mais recente longa-metragem, Deus da Carnificina, baseado em peça de teatro homônima (Le Dieu Du Carnage) da autora francesa Yasmina Reza, que também assina o roteiro junto com o diretor. Filmada em Paris, já que Polanski não pode colocar os pés nos Estados Unidos em vista de um processo criminal por estupro que lá responde, a co-produção polonesa, francesa, alemã e espanhola se passa quase que integralmente em um apartamento e no respectivo saguão de elevadores. Os únicos breves momentos fora desses ambientes são os bookends no parque onde a briga acontece, o primeiro mostrando-a de longe somente com a trilha sonora de Alexandre Desplat e o segundo ao final, juntamente com os créditos.

Um filme como esse, confinado em um set pequeno e somente com quatro atores, depende muito da capacidade do elenco de passar pelas transformações necessárias sem parecer forçado ou fora de lugar. A escalação, assim, foi fundamental nesse processo e Polanski acabou sendo muito feliz. Para viverem Penelope e Michael Longstreet, os pais da vítima, temos Jodie Foster e John C. Reilly. No lado “oposto”, nos papéis de Nancy e Alan Cowan, temos Kate Winslet e Christoph Waltz. Os quatro atores estão perfeitos em seus papéis e Polanski soube dirigi-los de forma que nenhum deles tenha necessariamente mais destaque do que o outro.

O trabalho de câmera do diretor, sempre mantendo pelo menos dois atores ao mesmo tempo na tela e usando espelhos para, com freqüência, criar a metáfora de “dois lados”, “duas personalidades”, é de uma técnica maravilhosa, algo que, na verdade, já era de se esperar de Polanski. E todas as – poucas – alterações de cômodos no apartamento são acompanhadas de uma câmera na altura dos personagens que os segue para onde vão, deixando-nos íntimos com a arquitetura do local e impedindo a privacidade. Somos ao mesmo tempo invasores e testemunhas de uma conversa civilizada que, ao longo de 80 minutos, degringola para uma verdadeira carnificina verbal como o título da obra já deixa entrever.

E tudo começa no fim, na verdade, pois, quando somos apresentados aos casais, nós os vemos já terminando a visita social, prontos para irem embora. No entanto, mimetizando de longe Buñuel em seu magnífico O Anjo Exterminador, Polanski impede que seus personagens saiam do apartamento. É uma palavra fora de lugar ali, um esquecimento acolá, mas os quatro não conseguem se separar, apesar de tentarem algumas vezes.

Penelope é uma escritora liberal e estudiosa de arte e história. Ela é a arquiteta da reunião e precisa que, de alguma forma, haja um pedido de desculpas pelo que foi feito ao seu filho. Seu marido, Michael, um vendedor de materiais de construção, é um cordeiro que a segue em tudo que ela diz. Os pais do agressor, por sua vez, são retratados como ocupadas pessoas de negócio, que parecem estar pelo menos meio degrau acima na escala social. Nancy é uma corretora de bolsa de valores que se mostra genuinamente preocupada com a situação de seu filho e Alan é um advogado que não para de falar no telefone celular.

A claustrofóbica e kafkiana conversa começa com todos os personagens “vestidos” como determina a sociedade, ou seja, são só elogios um para o outro, com olhares preocupados e decididos sobre o que fazer. Mas o verniz da chamada civilização vai aos poucos erodindo e a verdadeira personalidade de cada um deles vêm à tona, seja em razão de uma farpa lançada, seja em razão da introdução de álcool na discussão (sempre o álcool!).

No ponto alto da fita, quando a indisposição de Nancy suja de maneira muito desagradável os amados livros de arte de Penelope, começamos a ver uma espécie de dança das cadeiras, com os personagens trocando e destrocando alianças. Os alvos das discussões são, inevitavelmente, a forma como as crianças são educadas e o casamento. Mas, se observarmos além desses pontos específicos, veremos uma bela desconstrução da própria civilização ocidental atual escondida debaixo de uma camada salutar de comédia, que impede a aversão imediata ao que está sendo jogado em nossa cara.

Não há como não fazer uma correlação com Quem Tem Medo de Virgina Woolf?, peça de Edward Albee adaptada para o cinema em 1966 por Mike Nichols. A estrutura é a mesma: quatro personagens confinados em um apartamento discutindo assuntos variados. Além disso, a qualidade dos atores também é comparável. Mas o texto de Albee almeja e alcança muito mais do que o de Reza, só que, para isso, precisou ser bem mais complexo e pesado, um verdadeiro soco (vários socos, melhor dizendo) no estômago. O que a autora francesa escreveu é menos ambicioso, mas não menos eficiente e Polanski soube aproveitar a veia cômica da peça para criar uma obra palatável, sem perder de vista, porém, o potencial de gerar discussões muito intensas depois que as luzes do cinema forem acesas.

Deus da Carnificina (Carnage, Polônia/Alemanha/França/Espanha, 2011)
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Roman Polanski, Yasmina Reza e Michael Katims (tradução)
Elenco: Jodie Foster, Kate Winslet, John C. Reilly, Christoph Waltz, Elvis Polanski, Eliot Berger
Duração: 80 min.

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