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Crítica | Dexter – 1ª Temporada

O começo de muitos assassinatos.

por Kevin Rick
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Quando Dexter estreou em 2006 pelo Showtime, parecia um risco: uma série de televisão que colocava como protagonista não apenas um anti-herói, mas um assassino em série. O terreno era espinhoso, mas a criação de James Manos Jr., a partir dos livros de Jeff Lindsay, conseguiu transformar um psicopata em um personagem cativante e até mesmo simpático. A primeira temporada é não só um marco da televisão dos anos 2000, mas também um estudo de personagem ousado, repleto de tensão, humor macabro e reflexões morais.

Dexter Morgan, vivido magistralmente por Michael C. Hall, é introduzido ao espectador já como um homem que carrega uma máscara. Analista forense especializado em padrões de sangue no Departamento de Polícia de Miami, ele é também um assassino meticuloso que só mata criminosos que escaparam da justiça. Esse “código” foi instilado nele pelo pai adotivo, Harry, que percebeu cedo os impulsos homicidas do filho e tentou canalizá-los para uma forma “aceitável”.

Esse ponto de partida é brilhante porque combina gêneros. Dexter é ao mesmo tempo drama policial, suspense psicológico e uma sátira sobre moralidade e justiça. O código de Harry, que poderia soar como um truque narrativo barato, torna-se o coração da série: coloca Dexter como juiz, júri e carrasco, mas o obriga a refletir sobre os limites da lei e sobre sua própria humanidade.

A força do conceito está também no contraste. Por fora, Dexter é um homem comum, quase inexpressivo, de humor seco, que namora Rita (Julie Benz) numa relação conveniente porque ela, traumatizada pelo abuso do ex-marido, não exige intimidade sexual imediata. Mas por dentro, ele é um predador que descreve sua “máscara” de normalidade ao público por meio de uma narração em off afiada e sempre irônica. É esse monólogo interno, muitas vezes cômico em sua frieza, que cria uma cumplicidade incômoda com o espectador.

A primeira temporada organiza sua narrativa em torno do mistério do Assassino do Caminhão de Gelo, que drena e congela suas vítimas, deixando-as em cenas bizarramente limpas, quase artísticas. Logo se percebe que não é apenas um vilão de ocasião, mas alguém que conhece Dexter intimamente. A relação entre os dois é uma dança de espelhos: o antagonista não quer apenas matar, ele quer manipular Dexter ao testá-lo e obrigá-lo a revisitar seu passado.

Esse arco cumpre duas funções cruciais. Primeiro, dá à temporada uma espinha dorsal, algo que diferencia Dexter de um procedural policial comum. Não são casos semanais; é um quebra-cabeça contínuo que envolve a psicologia do protagonista (uma bem-vinda abordagem à época). Segundo, serve para revirar o trauma fundacional de Dexter: a morte brutal de sua mãe quando ele tinha três anos, o sangue, o contêiner e o resgate tardio por Harry. Essa revelação tardia, de que o assassino é na verdade Brian Moser, seu irmão biológico, é ao mesmo tempo chocante e orgânica, ampliando a mitologia do personagem.

A dualidade entre Dexter e Brian é bem construída. Ambos passaram pelo mesmo trauma, mas tiveram destinos diferentes. Brian, sem o “código” de Harry, abraçou plenamente o lado homicida. Dexter, ainda que assassino, aprendeu a colocar limites. O embate final entre os dois é, no fundo, uma escolha sobre identidade: Dexter poderia unir-se ao irmão e matar sua irmã Debra, completando o círculo, ou reafirmar o código e sacrificar seu elo de sangue. Ao optar pelo segundo caminho, Dexter reafirma sua persona “construída”, mas não sem a melancolia de quem rejeita a única pessoa que realmente o entende.

A força de Dexter também vem do contraste entre sua vida dupla. Na polícia, é cercado por colegas que dão textura à trama: Debra (Jennifer Carpenter), sua irmã adotiva, é ao mesmo tempo vulnerável e obstinada, uma vice que sonha com promoção na Homicídios; Doakes (Erik King) é o único que não compra a fachada de “cara normal” de Dexter, funcionando como cão farejador incômodo; Batista (David Zayas) e LaGuerta (Lauren Vélez) dão corpo às dinâmicas políticas e emocionais do departamento.

Mas é na vida pessoal que o disfarce de Dexter ganha mais força. O relacionamento com Rita é o centro disso: a princípio, conveniente para esconder sua falta de desejo, mas aos poucos, algo mais real e mais humano começa a se insinuar, com uma narrativa que constrói sem nenhuma apelação, de maneira bastante orgânica. É significativo que Dexter, um homem que se diz incapaz de sentir, comece a experimentar flashes de ternura, especialmente com os filhos de Rita. O “monstro” começa a se fissurar.

Visualmente, Dexter é uma série de contrastes. Miami é filmada com cores quentes, saturadas, repletas de sol, em uma estética que subverte a expectativa do noir urbano frio. Esse cenário ensolarado dá um ar quase tropical à violência, como se dissesse que o horror pode florescer em plena luz do dia, algo que faz sentido dentro dos tons cômicos que acompanham a história. A abertura é um marco da televisão: os gestos banais da rotina matinal de Dexter (fritar bacon, amarrar o sapato, cortar frutas) são filmados com closes e sons exagerados que evocam sangue e brutalidade. Essa sequência condensa o espírito da série: o cotidiano pode ser macabro, e o macabro pode ser cotidiano. Outro ponto alto é a trilha sonora, que equilibra melodias leves, quase lúdicas, com tons sombrios. A música ajuda a sustentar a ironia que permeia o show: estamos rindo junto de um serial killer.

A primeira temporada de Dexter é, acima de tudo, um estudo sobre identidade e moralidade. Dexter se apresenta como alguém incapaz de sentir empatia, mas é impossível não notar sua busca por conexão, seja com Rita, com Debra ou, tragicamente, com Brian. O código de Harry, nesse sentido, não é apenas um artifício narrativo, mas um dispositivo ético que mantém o personagem em suspenso entre o monstro e o humano, tornando-o bastante fascinante de acompanhar. Há ainda uma dimensão metalinguística. Ao colocar o público na mente de um assassino, Dexter obriga o espectador a questionar sua própria cumplicidade: por que torcemos por ele? Por que sentimos prazer em ver criminosos “justiçados”? A série provoca um desconforto moral que, paradoxalmente, é seu maior atrativo.

Se a temporada é memorável, também não está isenta de falhas. O ritmo às vezes se alonga em subtramas menos interessantes (como a investigação de Guerrero), que parecem funcionar apenas para distrair da trama principal, talvez um resquício de obras procedurais que inspiram a obra. Alguns coadjuvantes são subaproveitados, em especial LaGuerta, cuja rivalidade com Debra poderia render mais. Outro ponto é o didatismo de certos diálogos internos de Dexter. Por vezes, a narração explica demais e carrega a narrativa sem necessidade, até negando certas surpresas ou quebras de expectativas. Felizmente, o carisma sombrio de Michael C. Hall compensa essas redundâncias.

Reassistindo hoje, é fácil perceber como Dexter antecipou e influenciou uma onda de protagonistas moralmente ambíguos na TV, algo que começou com Família Soprano. O arco é fechado, coeso, cheio de tensão e com uma revelação final que dá à história uma dimensão trágica. Combinando o formato de thriller com uma investigação psicológica profunda cheia de bom humor, a obra conseguiu transformar um serial killer em um personagem com quem torcemos, rimos e sofremos. No fim, Dexter Morgan é um monstro que tenta ser humano e talvez por isso mesmo seja tão irresistível.

Dexter – 1ª Temporada | EUA, 2006
Criação e desenvolvimento: James Manos Jr. (baseado na obra de Jeff Lindsay)
Direção: Michael Cuesta, Robert Lieberman, Tony Goldwyn, Steve Shill, Adam Davidson, Keith Gordon
Roteiro: James Manos Jr., Clyde Phillips, Daniel Cerone, Drew Z. Greenberg, Melissa Rosenberg, Tim Schlattmann, Lauren Gussis, Kevin R. Maynard
Elenco: Michael C. Hall, Julie Benz, Jennifer Carpenter, Erik King, Lauren Vélez, David Zayas, James Remar, C. S. Lee, Christina Robinson, Daniel Goldman, Geoff Pierson, Christian Camargo, Mark Pellegrino, Brad William Henke
Duração: 654 min. (12 episódios)

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