O livro Dia Bonito Pra Chover, da escritora e professora Lívia Natália, publicado em 2017 pela Editora Malê, emerge como uma exposição poética de resiliência e diálogo com a tradição literária. As iniciativas deste grupo editorial estão profundamente enraizadas na valorização de vozes negras e a obra de Lívia representa essa luta ao entrelaçar as experiências pessoais e coletivas da população negra com influências de correntes literárias eruditas, como o arcadismo e o parnasianismo. Desde a sua abertura, o livro é marcado por epígrafes que citam pensadores como bell hooks e Ruy Espinheira Filho, revelando uma intenção clara: discutir o amor em suas diversas facetas. Essa abordagem, personalista e politizada, desafia estereótipos e amplia a compreensão do amor nas suas múltiplas dimensões, mostrando-se um campo fértil para a emoção e a reflexão crítica. A presença de elementos da natureza, especialmente as águas e os peixes, ao longo da obra, estabelece uma conexão intensa entre a escrita delicada da poetisa e o universo semântico do amor. Assim como os pastores árcades, que buscavam nas imagens da natureza o reflexo de sentimentos humanos, Lívia utiliza esses símbolos para enriquecer a sua linguagem poética e reforçar suas temáticas.
As águas e os peixes não são meramente decorativos, importante ressaltar, mas elementos que comunicam a fluidez e a transformação das relações amorosas, além de simbolizarem a ancestralidade e as raízes africanas da poetisa. Essa estratégia não apenas embeleza a poesia, mas também potencia a mensagem política e social de Lívia, que se refere ao amor como algo pulsante, análogo à natureza que a rodeia. Outro aspecto notável em Dia Bonito Pra Chover é a maneira como Lívia Natália reinterpreta personagens clássicos da mitologia greco-romana. Ao apresentar figuras como Odisseu sob a luz de sua herança cultural, a autora não apenas ressignifica esses ícones, mas também afirma a presença negra na história literária ocidental. Em seu poema Odisseu Negro, por exemplo, ela estabelece uma ponte entre essa tradição de veneração e a experiência contemporânea do ser negro amante, mostrando que a história da literatura não está isenta da diversidade cultural. A ousadia e competência em fazer essa conexão demonstra um empoderamento que transforma a narrativa tradicional, humanizando e dando voz ao indivíduo negro, que frequentemente permanece à margem nas discussões literárias. Seus poemas são políticos, mas contidos. Não gritam, sussurram.
Sendo um dos destaques do livro, Odisseu Negro se insere em um conjunto de trinta poemas, cada um deles abordando a complexidade do amor em diversas perspectivas. A escolha de Odisseu como figura central é extremamente significativa, pois na mitologia clássica, ele é o protagonista de uma jornada épica de volta ao seu lar e essa jornada é permeada por desafios e a busca por identidade. Ao relegar o papel de Odisseu a um personagem negro, Lívia Natália não apenas ressignifica a figura mitológica, mas também oferece uma reflexão sobre os desafios contemporâneos enfrentados pela população negra. O amor se torna, assim, um ato de resistência, não apenas uma busca por afeto, mas um retorno ao reconhecimento da própria identidade e dignidade. Com essa construção, o livro se torna um espaço onde todos são convidados a reimaginar suas próprias narrativas, entrelaçando as experiências de amor, dor e esperança que transcendem o tempo e a cultura.
Dentre outros destaques, temos o poema Eros e Psiquê, composição que revela as complexidades das relações amorosas enfrentadas por mulheres negras, que a autora descreve como “desproporção afetiva”. Essa expressão representa a experiência de se doar intensamente em um relacionamento que frequentemente não retorna esse amor de forma igualitária. A produção poética de Natália combina elementos do mito grego com as vivências contemporâneas. A voz lírica manifesta inseguranças e dúvidas, refletindo sobre a falta de reciprocidade em seus sentimentos. A imagem de ausência do parceiro é simbolizada, enfatizando um elo afetivo que, mesmo frágil, se mantém por meio de desejos e sensações físicas, enquanto a plenitude emocional almejada parece sempre fora de alcance. É uma construção poética que evidencia a luta interna da voz lírica entre a aceitação da realidade, marcada pela desproporção e pela idealização do amor que gostaria de viver, bem como a dura constatação de que, muitas vezes, seu companheiro a busca apenas em momentos de “necessidade”. A sensação de que seu amor é utilizado para satisfazer impulsos momentâneos torna o desejo de um afeto genuíno ainda mais doloroso.
Assim, a poetisa enegrece Psiquê, transformando o mito em uma reflexão sobre as expectativas frustradas, a solidão e a busca pelo amor legítimo, evidenciando as dinâmicas desiguais que permeiam as relações amorosas de mulheres negras em um contexto patriarcal e racista. Esses elementos comunicam uma mensagem profunda sobre a luta por reconhecimento e reciprocidade em um espaço onde o afeto muitas vezes se torna uma questão de sobrevivência emocional. Outro poema marcante é A Água e a Libélula. Em sua estrutura, a autora aborda as experiências afetivas de mulheres negras por meio de símbolos ricos e variados. O poema destaca um olhar novo sobre a mitologia clássica, especialmente pela referência à erotização, um elemento central na obra da autora, cuja poética é fortemente marcada pela feminilidade e pela negritude. O título, que faz alusão a um erotismo aquático, reflete a fusão entre a sensualidade e as dores da solidão e do abandono, temas recorrentes na vivência dessas mulheres. Ao explorar esses conceitos, a poetisa não apenas faz uma ponte entre o aspecto emocional e a crítica social, mas também propõe uma reflexão sobre a solidão enfrentada por mulheres que se encontram desamparadas.
O poema, estruturado em quatro estrofes de versos livres, evoca a figura mitológica de Ariadne, ligando-a à vivência contemporânea. Ariadne, apaixonada por Teseu, serve como metáfora para o abandono que muitas mulheres negras vivem ao longo de suas experiências afetivas. A ausência emocional de parceiros durante momentos cruciais, como a gestação ou em situações de adoecimento, ou a falta de suporte em tempos de crise, reforça a temática do abandono afetivo. Lívia Natália, ao articular essas questões, coloca a solidão da mulher negra em um contexto político, evidenciando a necessidade de um debate mais amplo sobre essas vivências. Assim, A Água e a Libélula não apenas expressa um desejo profundo, mas também um apelo por reconhecimento e mudança nas dinâmicas relacionais. Todos os poemas do livro são exuberantes em suas reflexões variadas sobre o amor. Poema Noturno, o mais erótico de todos, se destaca por ser mais explícito, denso, impossível de ser lido sem despertar sensações que bem sempre conseguimos nomear. E interessante é que mesmo vindo de uma voz lírica feminina se referindo ao amor heterossexual, os poemas em Dia Bonito Pra Chover podem ser refletidos dentro de outras dinâmicas relacionais. Entre dois homens. Entre duas mulheres. Entre casais, trisais, etc. A poetisa estabelece um panorama lírico sobre o amor multifacetado.
Ademais, Lívia Natália se aproxima do erotismo característico do parnasianismo, mas com uma perspectiva que desafia a frieza muitas vezes atribuída a esse movimento. Enquanto a poética parnasiana se perde em um “erotismo de fogo morto”, a poetisa traz à tona um erotismo vibrante, sedutor, que é repleto de ardor e desejo. Essa vitalidade se reflete em seu uso da linguagem, que é ao mesmo tempo lírica e visceral. Ao entrelaçar sensualidade com polêmica, a autora estabeleceu um espaço onde a exploração da sexualidade e do amor é celebrada, dando lugar a uma narrativa que flui com a intensidade das águas que constantemente habitam seus versos. A habilidade de Lívia em deslindar os tabus que cercam essas temáticas também indica uma recuperação de um espaço onde o corpo negro é não apenas visível, mas também desejado e amado. Dia Bonito Pra Chover é uma publicação que destaca a expressão da identidade negra no campo da poesia por meio de uma escrita que transita entre o erudito e o popular, o político e o sensorial.
A delicadeza de sua capa, elaborada por Pedro Sobrinho e Milla Carol, reflete bem essa dualidade presente nos poemas. A experiência que tive como estudante da autora, tanto na graduação quanto no mestrado em Letras na Universidade Federal da Bahia, proporciona uma compreensão mais profunda de sua trajetória e de como sua pedagogia se distancia das convenções habituais das instituições. Lívia não apenas ensina literatura: ela instiga, provoca e faz seus alunos refletirem sobre a complexidade das relações humanas e sociais. Erudita, propõe rodas de conversa, ao invés de aulas esquemáticas de teoria literária. Os encontros são sempre acontecimentos: aguardados com ansiedade, com debates sempre coerentes e democráticos. Ler os poemas dispostos em Dia Bonito Pra Chover é como fazer uma agradável viagem no tempo, retomando um espaço que deixou boas memórias. Seu livro é um manifesto, uma celebração e uma redescoberta da força e da beleza da experiência negra por meio da poesia, uma declaração de amor profundo e engajado. Na época de seu primeiro lançamento, em suas palavras, a autora revelou que a desumanização que o racismo impõe influencia todos os aspectos da vida, inclusive as relações afetivas entre as pessoas.
Para a poetisa, este é um livro que visa reverter essa desumanização, trazendo à tona a beleza e a complexidade do amor entre mulheres e homens negros. Ao descrever sua obra como uma “encomenda de amor”, Lívia Natália enfatiza a importância de humanizar as experiências de seus personagens e de sua própria narrativa. O título do livro, com a evocativa imagem de um “dia bonito com a iminência da chuva”, é uma metáfora poderosa que não só sugere um amor pleno e vibrante, mas também ressalta a fragilidade e a beleza das emoções humanas, mesmo quando estão carregadas de dor e sofrimento. Esta é quarta publicação de uma continuidade que ecoa a temática da água, um símbolo que transpassa as páginas da obra de Lívia Natália. As águas, em suas diferentes formas e significados, funcionam nos poemas como uma metáfora que permeia não apenas os títulos, mas também a estrutura e a linguagem poética da autora. As imagens aquáticas evocam a fluidez das emoções, a força do amor e, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade de seres humanos que estão constantemente se reinventando diante dos desafios impostos pela sociedade. Esta conexão com a água não é mera ornamentação, mas uma armadura emocional que permite à autora explorar a profundidade dos sentimentos humanos, especialmente em uma sociedade que frequentemente não reconhece a humanidade plena do ser negro.
Ao articular esse vínculo com a água, Lívia Natália nos convida a mergulhar em suas reflexões poéticas, onde cada verso é um convite a sentir a tempestade e a calma que habitam em nós. Em linhas gerais, a proposta de humanizar o amor nas relações afrodescendentes e dar voz a essas experiências através da poesia se torna a mensagem central da obra de Lívia Natália. Ao abordar o amor em sua forma mais genuína, a autora não ignora as dores e as lutas que vêm acompanhadas dele, mas busca fazer com que sua história ressoe com beleza e resiliência. A literatura, em sua essência, tem o poder de transformar e oferecer esperança, e, ao criar uma obra poética que trata do amor como um elemento de cura, Lívia Natália nos lembra que mesmo em tempos difíceis, é possível encontrar beleza e força nas relações humanas. Por meio de suas composições, somos convidados a entender que o amor entre mulheres e homens negros é uma revolução silenciosa, que enaltece a vida, recupera a identidade e celebra a diversidade em um espaço que por muito tempo foi reivindicado e negado. Dia bonito pra chover se afirma, portanto, como uma obra que não só busca humanizar sua mensagem, mas também compartilhar a profundidade de uma existência que merece ser celebrada.
Em suas 71 páginas, encontramos o amor em sua forma mais pura e multifacetada, ecoando a plenitude do ser humano em toda a sua complexidade e beleza.
Dia Bonito Pra Chover (Brasil, 2024)
Autor: Lívia Natália
Editora: Segundo Selo
Páginas: 71