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Crítica | Diário de uma FEMEN

por Luiz Santiago
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Em abril de 2008, na Ucrânia, o grupo feminista FEMEN, com seu lema “SEXTREMISMO”, foi fundado por Anna Hutsol. Classificado como uma organização na linha do feminismo radical, o grupo se dispôs a lutar pelos direitos das mulheres de maneira midiaticamente mais intensa e chamativa, sendo responsável pelos polêmicos protestos em topless nos mais diversos eventos e lugares de grande exposição popular — ou mesmo com fotos em casa ou lugares devidamente escolhidos quando há grande situação de risco para as mulheres, como no caso das ativistas na Tunísia, por exemplo. Em sua agenda, o grupo se coloca contra o turismo e a indústria do sexo, as instituições religiosas, o sexismo e a homofobia, dentre outras causas sociais e culturais ao redor do mundo.

Durante quatro anos de pesquisa, Michel Dufranne, vindo do rádio e da TV em seu país e já tendo adaptado para os quadrinhos o Novo e o Antigo Testamento, assim como Voltaire e Dumas Filho; pesquisou e entrevistou o grupo FEMEN, resolvendo então juntar-se à artista Séverine Lefebvre para criar uma história que aglutinasse esse material que coletou. Na introdução da HQ, autor problematiza a sua própria posição como homem, etc etc, ao falar sobre este tema essencialmente feminino e traz alguns pontos bastante interessantes sobre o processo de produção da obra, assim como sua intenção e conteúdo. Ele é bem claro ao dizer que esta é inteiramente uma obra de ficção, mas que todo o seu conteúdo é livremente baseado nas centenas de entrevistas que teve com ativistas ao longo dos anos.

Na obra, sobra pouco ou nenhum espaço para a construção racional das ideias do SEXTREMISMO ou do próprio feminismo radical, o que é uma pena. A úncia fala teórica da história vem pela boca de um amigo da protagonista, uma recém-chegada ao FEMEN, onde ele fala sobre o quão inútil é a discussão teórica do mundo das mulheres e seus inúmeros problemas ao redor do mundo se não existem pessoas fazendo coisas de verdade para que essa situação mude. A fala dele, apensar de um tanto cínica em alguns momentos (trata-se de um diálogo longo, em um jantar) é bastante instigante e coloca em cena o que é o feminismo liberal ou correntes de problematização plácida da situação da mulher. Sendo o feminismo um movimento bastante amplo, foi interessante ver algo sobre um dos lados aparecer com seu componente de ideias, mesmo que de forma crítica. Mas isso só ressalta a nossa visão de que falta o lado teórico para o grupo que protagoniza a história.

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Um protesto FEMEN.

Uma pesquisa rápida sobre essas mulheres e é fácil entender que algumas ideias e modelos de ação que elas levantam possuem uma justificativa boa para ser discutida, mas isto é apenas aludido aqui no quadrinho ou colocado como parte de uma série de “treinamento de protestos” que serve de pouquíssima coisa para o roteiro. Seria muito mais proveitoso utilizar todas essas páginas de exercício de autoridade, treinamento de postura e gritos de “NUDEZ É LIBERDADE“, “FODA-SE SUA MORAL” ou “NÃO SOU UM BRINQUEDO SEXUAL” para realmente fazer um diário de alguém que está no grupo, não um manual que, a longo prazo, nada diz, porque fica apenas com palavras de ordem na superfície.

Essa falta de relatos de experiências mais teóricas ou problematizadoras por parte da protagonista é que aos poucos mina a qualidade da graphic novel. Mas não é só isso que cumpre esse papel. O início da história é como uma sufocante junção de humilhações, cantadas, perseguições, pedido de uso do corpo da mulher para “conquistar clientes”, cobrança de casamento e filhos, cobrança para ficar magra, cobrança para se vestir “de maneira adequada” e mais uma série de tormentos que (também) as mulheres ouvem constantemente. O impasse é o ritmo e a forma como todas essas cosias são apresentadas para o leitor. Tudo vem em um tsunami de azar e infâmias verbais que preparam o terreno para a entrada da protagonista no FEMEN, mas é como a decisão final dela fosse apenas uma tomada abruta. Se tudo isso fosse trabalhado de maneira mais esparsa ao longo das páginas (novamente: poderiam diminuir quase tudo do chatíssimo e desnecessário treinamento, cujo resultado caberia perfeitamente em uma elipse narrativa), o primeiro diálogo de reunião do grupo e sua discussão teriam chegado a um patamar bem mais alto. E os dissabores do “diário” não param por aí.

Dufranne se permite ainda criar uma horrenda sequência de amigos conversando em um bar. Em algum momento a conversa é sobre modelo de uma camiseta que um deles fez, mas as provocações descabidas, os xingamentos com fundo de verdade e a passivo-agressividade de algumas pessoas na mesa não acrescentam nada à história e ainda silenciam a única personagem que teria realmente um grande peso, se falasse, talvez com inputs que permitissem o grupo pensar sobre todos os medos e situações pelas quais ela vinha passando. E de como sua postura, pensamento e forma de encarar a vida estavam mudando nas últimas semanas. A oportunidade é perdida e o leitor fica com uma longa sequência filler. Mais uma para ocupar espaço de uma boa discussão.

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O treinamento que se estende demais e atrapalha a história.

Quem se sai muito mais feliz no projeto é a desenhista e colorista Séverine Lefebvre. Exceto pela grande similaridade com que ela desenha alguns rostos recorrentes ou pela dificuldade de mostrar personagens mais velhos na trama (o pai de uma das mulheres parece mais um irmão), ela trabalha bem com o estilo de economia de espaço, mostrando o que é necessário e fazendo de algumas situações apenas um destaque emotivo para rostos, olhos, bocas e mãos, uma herança do estilo de “linha clara” que igualmente pode ser visto no trabalho de uma contemporânea de Lefebvre, a também francesa Margaux Motin, do excelente Placas Tectônicas, que também fala da posição e condição da mulher dentro de um cenário de trabalho, família e constantes obrigações, embora o tom e a intenção de Placas seja completamente diferente do que é utilizado neste Diário.

Mas o autor parece ter reservado o pior para o final. De propósito. Existe uma estranha redenção ou quietude absurda no comportamento da protagonista. Sem nenhuma conversa, pensamento, narração ou mesmo componentes não-emotivos para justificar essa mudança total de paradigma, o autor coloca um ambiente que essa mesma personagem, três anos antes, chamaria de “patriarcal”. E com isso não quero nem por um segundo dizer que pessoas não possam mudar de opinião ou que ativistas desse ramo do feminismo não possam constituir família do modo… digamos… mais tradicional. É uma escolha do indivíduo e cada um faz o que quiser de sua vida. O que ocorre aqui, porém, é que a personagem não é construída na história para ter esse tipo de posição final. E até poderia ter, se houvesse uma indicação de mudança de pensamento, algo que fosse muito mais do que um quadro com ela recebendo uma mensagem de celular e derramando algumas lágrimas.

Pelo menos a leitura nos ensina um pouco sobre os bastidores e um tantinho das táticas do FEMEN, mas nada além disso. A leitura não chega exatamente a ser uma perda de tempo, mas deve irritar e trazer mais suspiros e exclamações negativas do que o oposto. E é diante desta situação que a grande pergunta-meme não deixa de piscar como um farol enlouquecido: não era para ser diferente?

Diary of a Femen (Bélgica, 2016)
Editora original: Le Lombard
Roteiro: Michel Dufranne
Arte: Séverine Lefebvre
Cores: Séverine Lefebvre
130 páginas

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