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Crítica | Diários de Classe

por Leonardo Campos
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Há séculos naturalizada, a pobreza e a miséria são reforçadas constantemente em território brasileiro, nação que também dialoga com o jogo de espelhos refletores das relações capitalistas globais, tomadas por desigualdades, tais como ao que nos é apresentado no documentário Diários de Classe, lançado em 2017. O Brasil, país que tal como sabemos, possui origem colonial, perfaz um percurso histórico permeado por uma dinâmica sistêmica descomprometida com o processo educacional de sua população. O que temos é um manancial de leis e projetos que raramente se efetivam e são traduzidos da teoria para a realidade com eficácia, numa contemplação geral da gigantesca comunidade imaginada chamada “população brasileira”, tratada conforme o seu pertencimento no esquema as nossas esferas sociais bem desiguais.  Tudo isso será confrontado nesta produção que nos tira da zona de conforto, tendo como linha de abordagem estética, os mecanismos do chamado “cinema direto”.

Dentre tantos momentos oportunos em Diários de Classe, a fala de uma professora em determinado trecho do documentário pode ser considerado o ponto nevrálgico da narrativa. A profissional diz que o seu interesse em sala de aula é “mostrar a vocês que isso aqui é uma prioridade”. Vocês, neste caso, são os estudantes, mas dentro da lógica cinematográfica, também somos nós, espectadores desta arrebatadora jornada coerente em seus pontos de discussão, apenas vacilante em brevíssimas peculiaridades narrativas, algo que nem de longe atrapalha a fluência da crítica social empreendida por Maria Carolina da Silva e Igor Souza, escritores e diretores do documentário que teve pouca circulação, sendo mais abrangente em festivais, uma das injustiças no terreno da exibição e comercialização de audiovisual no Brasil, haja vista a quantidade de bobagens que ocupam as salas de cinema em nosso país.

O filme perfaz a trajetória de três mulheres em busca de mudança, sempre com o cuidado em não transformar as suas personagens em “coisas”, algo perigoso vindo de pessoas que podem até conhecer a realidade, mas não estão exatamente mergulhadas nos meandros da existência de Maria José, empregada doméstica ainda cheia de força para lutar uma batalha injusta diariamente, engajada pela sensação de que pode ter um futuro melhor. Tiffany, jovem que vive diante das mazelas do preconceito por causa de sua condição transsexual, mais um obstáculo numa sociedade ainda despreparada para lidar com o “outro”. Ela vive num abrigo, tem muita dificuldade de leitura e outras formas de aprendizagem. Para amarrar a abordagem tripla, temos Vânia, presidiária que aguarda a revisão de sua sentença e enquanto isso, estuda nas condições que lhe são permitidas, tendo em vista alcançar a mudança social almejada. São pessoas que vivem num contexto onde a educação é tratada como supérfluo, luxo para o que de fato é mais urgente, como por exemplo, alimentação, vestuário e um lugar para ter como abrigo.

Dotadas de habilidades e conhecimentos que não dialogam exatamente com as convenções do saber escolar, as suas experiências e vivências individuais possuem pouco valor dentro da ordem sistêmica que rege nossa sociedade e seus dicotômicos mecanismos de ascensão e exclusão social, algo que é alvo das preocupações de muitos estudos, mas que infelizmente está longe de alcançar uma cenografia ideal para atuação dos envolvidos neste processo de representação constante, numa peça que podia ser chamada de “A Falência da Educação Brasileira”, com exibição em todos os estados, capitais e caravanas para sessões no interior. Como exemplo, no atual painel da “sociedade da informação”, temos o estabelecimento de uma cultura dominante que prioriza determinados saberes, em detrimento de outros, o que nos faz questionar os lugares a serem ocupados por Maria José, Vânia e Tiffany. A globalização, processo social de velocidade frenética, conhecido por suas constantes trocas e produção não abre espaço para a inserção de pessoas analfabetas ou com restrição de determinados saberes educacionais, algo que aumenta ainda mais as preocupações de pessoas que possuem trajetórias semelhantes ao trio radiografado no documentário, uma amostra tripla de uma realidade que chega aos milhões.

Diante do exposto, esclareço: vejo Diários de Classe como uma produção dentro dos mecanismos da EJA, a Educação de Jovens e Adultos, modalidade de ensino que historicamente, enfrenta crescentes desafios. Ao longo dos 74 minutos, o documentário expõe a luta de três personagens em busca da devida inclusão social, num mundo onde o analfabetismo se configura como um grave problema na educação da população jovem e adulta, algo que reflete as desigualdades históricas existentes no em país com passado colonizador responsável pela pavimentação das celeumas em diversas esferas sociais, com destruição maior no âmbito educacional. Com debate situado em Salvador, capital da Bahia, a produção traça um perfil das vidas pessoas três estudantes biografadas, mulheres alijadas dos direitos mais básicos providos aos seres humanos. Numa abordagem micro, Diários de Classe flerta com o macro.

Sabemos que grande parcela da população de jovens e adultos, sobretudo os idosos, não tiveram as mesmas oportunidades de exercício pleno da cidadania por falta de acesso à educação básica. Não é preciso ser especialista para compreender. É o que está nos jornais, na abordagem ficcional de filmes e séries, e ainda mais saliente, na observação crítica da vida cotidiana, do nosso entorno. Diante da disfuncional conjuntura atual, balizada pelas relações sociais entre pessoas e as famigeradas “regras do capital”, podemos observar como vivemos um processo que precisa ser interpretado de várias vertentes, afinal, ao passo que temos constantemente, questões de ordem material cerceando o cotidiano, juntamente com as mudanças no campo da política, da economia, da comunicação, dentre tantos outros territórios de nossa sociedade desigual.

Podemos observar que Diários de Classe está mergulhado num contexto de transferência das responsabilidades educacionais para o terceiro setor, pois os nossos representantes estatais, desde sempre, estabeleceram a temível flexibilização das políticas públicas que reforçam o abismo social responsável por aumentar os índices sociais de exclusão, algo que culmina na marginalização de mulheres como as apresentadas no documentário, cerceadas pelos machismo, desemprego, preconceito e, o catalisador disso tudo, isto é, a falta de acesso ao ambiente educacional, possível modificar de suas existências desprovidas de qualquer esperança. Ao flexibilizar as suas tarefas, o estado promove a conhecida educação de qualidade no setor privado, em detrimento da educação pública de gestão e condução questionável, não exatamente por responsabilidade de agentes pedagógicas, tampouco pelas precárias condições arquitetônicas de muitas instituições de ensino, mas por causa dos esquemas internos de um sistema que já nasceu fadado ao colapso.

Interessante é ver que Diários de Classe é crítico sem deixar de ser cinema. Ao evitar o panfleto puro, a produção demonstra a sensibilidade poética do filme, brevemente dispersivo em alguns trechos, principalmente no momentos em que a câmera vagueia longe dos propósitos centrais, mas nada que atrapalhe a condução do documentário enquanto produto audiovisual para circulação dentro dos centros de exibição comercial, afinal, entreter não é algo que está conectado especificamente ao processo de desconexão cerebral diante da realidade. O nome disso é alienação, justamente o contrário do que se propõe na produção crítica e reflexiva em questão. Tal como num rizoma, as propostas do subtexto deste documentário precisam se espalhar para que haja adequação e a verdadeira mudança. O nome disso é utopia, o combustível que ainda nos faz crer na possibilidade de renovação. Vamos acreditar?

Diários de Classe — Brasil, 2017
Direção: Igor Souza, Maria Carolina da Silva
Roteiro: Igor Souza, Maria Carolina da Silva
Elenco: Vânia Lúcia Costa, Tifanny Moura, Maria José
Duração: 74 min.

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