Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Diários de Motocicleta

Crítica | Diários de Motocicleta

por Rodrigo Pereira
2,5K views

Escrever sobre Che Guevara nunca é fácil. É o tipo de figura que desperta amor ou ódio em larga escala nas pessoas e, tal qual o argentino, é radical, não há meio termo. Ou se admira ou se detesta Guevara. Pelo menos, é a impressão que tenho, pois nunca cruzei com qualquer ser humano que, quando abordado sobre o tema, tenha dificuldades em escolher um sentimento ou outro.

No entanto, antes de se tornar comandante Che Guevara, uma das principais figuras e líderes da Revolução Cubana de 1959, Ernesto Guevara de la Serna era um jovem estudante de medicina que vivia com sua numerosa família em Buenos Aires. É a partir desse ponto que Diários de Motocicleta começa sua história.

Dirigido pelo brasileiro Walter Salles, o filme acompanha o jovem Ernesto (Gael Gárcia Bernal), na época apelidado de Fuser e não Che, e seu amigo bioquímico Alberto Granado (Rodrigo de la Serna), o Mial. Enquanto Guevara encontra-se no último semestre da faculdade de medicina, Granado já é formado e está prestes a completar 30 anos. Por conta disso, ambos resolvem comemorar o trigésimo aniversário de Mial de uma forma pouco convencional: viajar de moto de um extremo ao outro da América do Sul.

A ideia dos dois é sair de Buenos Aires e chegar até Caracas, no extremo norte do subcontinente, passando por boa parte do território argentino, chileno, peruano, colombiano e, finalmente, venezuelano. Uma viagem com mais de dez mil quilômetros em cima de La Poderosa, uma moto velha que parecia incapaz de sequer chegar ao final da rua.

Mesmo com um veículo aparentemente sem condições de percorrer tamanha distância, ambos encaram a viagem e Salles começa a definir a primeira metade dessa aventura. Enquanto os amigos começam a percorrer a Argentina, o entusiasmo comum de enfrentar um grande acontecimento fica evidente tanto nas atuações dos atores, que constroem uma química envolvente, quanto na direção de Salles, expondo vários (e divertidos) acontecimentos em um curto espaço de tempo.

Essa dinâmica se estende por praticamente toda a trajetória no país natal, mas começa a mudar conforme a dupla vai cruzando as fronteiras e as dificuldades começam a aparecer. 

Festas, bebedeiras e bons locais para passar a noite vão ficando cada vez mais raros e, em contrapartida, os empecilhos, cada vez mais comuns. Essa mudança fica clara quando os viajantes chegam ao Chile, onde o cenário das pradarias argentinas dá lugar à forte neve da região dos Andes, acrescentando o frio ao grupo dos infortúnios vividos pela dupla, que já conta com falta de dinheiro, alimentação precária e noites ao relento.

Aos poucos, e não por acaso, Salles constrói desafios cada vez maiores e que possibilita aos protagonistas o contato com algumas das diversas mazelas sociais dos povos latinos. E apesar de Mial perceber essas situações e logo seguir em frente, Fuser não consegue parar de pensar (e se indignar) sobre as injustiças que evidencia.

Não à toa o primeiro momento de fúria do jovem Ernesto contra os representantes dessas injustiças vêm contra uma grande mineradora na região do deserto do Atacama. Após passarem a noite com um casal de autointitulados comunistas, que viajam em busca de trabalho, Fuser e Mial presenciam trabalhadores sendo escolhidos para trabalhar nas minas dessa companhia. A maneira como essas pessoas são escolhidas, como se fossem simples peças substituíveis ao menor indício de ineficiência, irrita profundamente Ernesto, que confronta duramente o homem que representa a figura do chefe. Está desperta a chama que transformaria Fuser em Che.

Após esse episódio, que acertadamente se passa no deserto chileno, trazendo a sensação de escassez e dificuldade extrema, nossa dupla segue sua viagem e Salles começa a construir a segunda metade de seu longa.

Nesse ponto, o ritmo, antes frenético e divertido, dá lugar a uma gradativa diminuição de velocidade, dando espaço cada vez maior às reflexões acerca das desigualdades sociais, e sempre com Ernesto como figura representativa central desses pensamentos. O contato com os povos originários peruanos, durante a passagem pelo país, coloca novamente a dupla frente às injustiças, com relatos de pessoas expulsas de suas terras por detentores de poder e dinheiro.

É interessante perceber a atenção aos detalhes do diretor, pois justamente nessa parte da película começamos a ver Fuser com a barba por fazer e crescendo, algo inexistente antes. O contato com trabalhadores comunistas, a raiva direcionada a uma grande empresa privada e a adoção da barba como fato novo são pequenos indícios que Salles nos dá para demonstrar a crescente revolução interna de Ernesto.

A barba sai de cena somente quando chegam à casa do doutor Hugo Pesce (Gustavo Bueno), um amigo de Mial que os dará uma estadia confortável antes de rumarem para Caracas, seu destino final. Aqui, novamente, o cuidado do diretor com os detalhes é encantador, pois Ernesto tira sua barba para logo em seguida ter contato pela primeira vez com escritos de José Carlos Mariátegui, um dos principais pensadores latinos do marxismo no século XX. Isso demonstra o crescente interesse de Guevara no tema que o levaria a se tornar quem se tornou.

Todos esses acontecimentos nos levam para o final da obra em uma colônia de leprosos, em San Pablo. Lá, Ernesto e Alberto passam algumas semanas ajudando a cuidar dos enfermos e são completamente abraçados tanto pela equipe médica e religiosa que gere o local quanto pelos pacientes. Ao final da estadia, nossa dupla se despede de um lugar totalmente mudado, assim como os valores e ideias de Ernesto.

Diários de Motocicleta é muito mais que uma obra que trata somente dos acontecimentos da viagem empregada por Fuser e Mial, é um filme que retrata a atmosfera da estrada e de uma grande aventura com extrema qualidade, nos deixando com imensa vontade de conhecer nossos países vizinhos. Ao mesmo tempo, e com a mesma qualidade, apresenta o início transformação do jovem estudante de medicina Ernesto Guevara de la Serna em Che Guevara, uma das figuras mais famosas e estudadas dentro do campo político e cultural de nosso tempo.

Diários de Motocicleta — Alemanha, Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos, França, Peru, Reino Unido, 2004
Direção: Walter Salles
Roteiro: José Rivera (baseado na obra de Ernesto “Che” Guevara e Alberto Granado)
Elenco: Gael García Bernal, Rodrigo de la Serna, Mía Maestro, Mercedes Morán, Jean Pierre Noher, Sofia Bertolotto, Gustavo Bueno
Duração: 126 minutos

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais