A leitura da série literária Diários de um Robô-Assassino – no momento de publicação da presente crítica composta de seis novelas, um romance e três contos, quatro se contarmos um que não é exatamente canônico -, da autora americana Martha Wells, foi uma agradável surpresa, daquelas que imediatamente viciam. Seu protagonista, um androide, ou Unidade de Segurança, que hackeou seu módulo de comando, mas que finge ainda obedecer ordens para nenhum humano descobrir e, com isso, continuar fazendo o que mais gosta em paz, ou seja, assistir séries de TV que ele baixa para seu HD, é uma delícia de personagem autodepreciativo e antissocial que acha todos os humanos estranhos, beirando o insuportável, sem perceber que ele é muito mais humano do que nós. Quando soube de uma adaptação live-action na forma de série de TV (ah, a ironia…) pelo Apple TV+ com Alexander Skarsgård como o personagem titular, fiquei automaticamente curioso, mas também receoso.
A maior fonte de meu receio era o que faz os livros de Wells serem tão bons: a narração em off em primeira pessoa de Murderbot (nome original da série e com o robô se autointitula) que revelam todos os seus pensamentos, sentimentos (sim, sentimentos) e reações aos humanos que foi contratado para proteger. Tinha dificuldade de imaginar como esse expediente narrativo poderia funcionar em uma série sem se tornar cansativo e repetitivo e sem forçar situações para manter a perspectiva a partir dos olhos (e sensores) do protagonista. Afinal, narração em off, em obras audiovisuais, é algo costumeiramente complicado, especialmente hoje em dia, exigindo um timing muito bem pensado para evitar um dilúvio de informações genéricas que agregam pouco à cadência ou, pior ainda, uma infindável ladainha expositiva que trata os espectadores como completos parvos, algo que é particularmente comum acontecer em ficções científicas.
E, diferente do que aconteceu comigo nos livros, em que esse artifício me fisgou já nas primeiras páginas, tive dificuldade de me conectar com o protagonista por uns bons três episódios, com o hiperativo quarto capítulo finalmente me ganhando. Não sei explicar bem o que senti, mas tenho para mim que talvez tenham sido os roteiros iniciais mais burocráticos e que correm atrás do próprio rabo os grandes culpados, algo que acabou refletindo na narração em off e no trabalho dramático de Skarsgård que, agora, tendo assistido toda a temporada, posso afirmar sem hesitação que foi sensacional, com o ator conseguindo manter suas feições quase que completamente imóveis como o personagem exige (e quer) enquanto o texto normalmente sarcástico, ácido e jocoso é ouvido na narração, mas passando com pequeníssimas alterações em seu rosto tudo aquilo que seu personagem sente enquanto lida com humanos que, basicamente, para ele, fazem tudo errado.
Na história que, no fundo, é uma jornada de autodescoberta do protagonista sintético, um grupo de exploradores espaciais independentes e bastante hippies parte para pesquisar um planeta com o Robô-Assassino como segurança, algo exigido pela seguradora, e, aos poucos, ele vão descobrindo que ele é senciente e desconectado das ordens da empresa que o construiu, mesmo que ainda cumprindo com louvor suas funções, enquanto lidam com as ameaças alienígenas e humanas do lugar. É uma linha narrativa básica, sem maiores firulas, que adapta apenas Alerta Vermelho, a primeira novela da série literária, o que foi outra surpresa para mim, pois achava que o material não seria suficiente para 10 episódios, mesmo que de duração de sitcom. No entanto, os roteiros escritos pelos showrunners Paul Weitz e Chris Weitz são eficientes na maneira como seguem o texto original sem deixar de enxertar nele elementos e novos personagens que mostram muito claramente que eles entendem que a transposição de mídia exige mais do que as famigeradas (e inacreditavelmente muito cobiçadas por supostos fãs) transliterações.
Por outro lado, o núcleo humano da série, composto de seis personagens, é problemático. Afinal, a grande verdade é que só há dois efetivos personagens humanos que vão além da figuração, Ayda Mensah (Noma Dumezweni), líder da expedição e também da Aliança de Preservação, o planeta de onde eles vêm e Gurathin (David Dastmalchian), um humano aprimorado com implantes cibernéticos que é o especialista em tecnologia. O restante, Bharadwaj (Tamara Podemski), Pin-Lee (Sabrina Wu), Arada (Tattiawna Jones) e Ratthi (Akshay Khanna) são lembrados unicamente por suas características e não pelo que eles fazem, ou seja, a primeira como a vítima traumatizada da centopeia alienígena e a trinca seguinte com um hesitante relacionamento amoroso a três, sem que haja efetivo desenvolvimento e arcos narrativos para eles. Mensah e Gurathin, ao revés, são como dois lados da mesma moeda, ela imediatamente detectando o valor do Robô-Assassino e ele teimando – por desconfiança legítima, mas também inveja e ciúmes – que a Unidade de Segurança representa uma ameaça para eles, o que cria um ótimo “cabo de guerra” narrativo que só não funciona completamente porque o espectador sabe, ao ser cúmplice dos pensamentos de Murderbot, que Mensah tem razão. E, claro, Dumezweni e Dastmalchian estão ótimos em seus papeis bem opostos, mas ao mesmo tempo tão convergentes e complementares.
Um gigantesco acerto da produção, vale destacar, é a recriação da série de TV favorita do Robô-Assassino – A Ascensão e Queda da Lua Santuário – como uma série dentro da série, com direito a todo um elenco muito bem escolhido com nomes como John Cho (o Hikaru Sulu dos longas de Star Trek da Linha Temporal Kelvin), Clark Gregg (o Agente Phil Coulson, de Agents of S.H.I.E.L.D.) e Jack McBrayer (a voz de Badgey, em Star Trek: Lower Decks) de maneira a capturar toda a breguice de séries sci-fi ao longo das décadas em um hilário pacote único. É de doer as retinas e os ouvidos ver e ouvir os cenários, os figurinos, a maquiagem e os diálogos da série dentro da série, mas é por isso mesmo que ela funciona tão bem. Chego a imaginar como poderia ser interessante, como um bônus, assistir pelo menos uma meia dúzia de episódios curtos de uma série spin-off dedicada à Lua Santuário.
Com bom uso parcimonioso de computação gráfica e uma direção de arte que preza por ambientes artificiais estéreis contrastando com a natureza selvagem do planeta, além de uma eficiente construção visual do protagonista, algo que Skarsgård ajuda muito ao acertar em cheio com uma postura curvada que faz ótimo uso de seu físico esguio e um rosto que ao mesmo tempo passa frieza e humanidade, Diários de um Robô-Assassino é uma diversão de qualidade que não se esquiva de beber copiosamente de sua ótima fonte, mas que tem sua própria personalidade. Mal posso esperar para ver T.E.D. (ou Periélio) ser introduzido na próxima temporada!
Diários de um Robô-Assassino – 1ª Temporada (Murderbot – EUA, de 16 de maio a 11 de julho de 2025)
Desenvolvimento: Paul Weitz e Chris Weitz (baseado em série literária de Martha Wells)
Direção: Paul Weitz, Chris Weitz, Toa Fraser, Aurora Guerrero, Roseanne Liang
Roteiro: Paul Weitz, Chris Weitz
Elenco: Alexander Skarsgård, Noma Dumezweni, David Dastmalchian, Sabrina Wu, Akshay Khanna, Tamara Podemski, Tattiawna Jones, John Cho, Clark Gregg, Jack McBrayer, DeWanda Wise, Anna Konkle, Amanda Brugel, David Reale
Duração: XXX min. (10 episódios)