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Crítica | Diários de um Robô-Assassino: Contos de 2018 a 2025, de Martha Wells

Um pouco mais do fascinante universo construído por Martha Wells.

por Ritter Fan
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Entre 2018 e 2025, Martha Wells publicou três contos canônicos em seu universo literário de Diários de um Robô-Assassino e um que é citado pelo protagonista cibernético em Estratégia de Saída e, apesar de não ser oficialmente canônico, pode ser visto como tal. Fiquem, abaixo, com as críticas individuais de cada uma dessas obras, começando pela não-canônica e, depois, seguindo a ordem original de publicação. Vale apenas notar que os títulos em português são traduções diretas minhas, já que eles não foram lançados no Brasil quando da publicação da presente crítica.

Obsolescência
(Obsolescence)

Em Estratégia de Saída, quarta novela da série literária Diários de um Robô-Assassino, o androide protagonista viciado em séries de TV diz, de passagem, que assistiu uma série chamada Obsolescência sobre os primórdios das explorações espaciais por humanos, mas a abandonou por achar inverossímil demais. Não coincidentemente, tenho certeza, no ano seguinte da publicação do referido capítulo da história de Murderbot, eis que Martha Wells lança o conto Obsolescência que se passa justamente nessa época, ajudando a estabelecer que o futuro distante que ela imaginou começou aqui mesmo na Terra, mesmo que sua obra lançada como parte da coletânea gratuita Takes Us to a Better Place: Stories, não seja oficialmente canônico.

O conto não é exatamente sobre o início da colonização humana do espaço sideral, mas sim um bem construído whodunnit clássico que se passa na estação espacial Kidland na órbita de Júpiter, que é uma escola para crianças pequenas. Nele, Greggy, um idoso humano ciberneticamente aprimorado que, em sua juventude, trabalhara pesado nas colônias terrestres da Lua e de Marte, é encontrado morto pelas crianças, flutuando em um módulo sem gravidade da estação, com sinais de que seus implantes foram colhidos por quem quer que o tenha assassinado. Jixy, a administradora da base e a única adulta sem implantes tecnológicos por ainda ser relativamente jovem, toma as providências para garantir a segurança de todos os demais e, relutantemente, tenta descobrir o responsável já que a ajuda externa demorará a chegar e que o assassino talvez ainda esteja por ali.

Usando essa premissa simples, Wells constrói uma história completa, com começo, meio e fim, mesmo com um número acanhadíssimo de páginas, que aborda praticamente tudo o que ela desenvolve tão bem em sua série literária, ou seja, exploração espacial, colonização de planetas, ganância de corporações, humanos aprimorados e toda a complexidade moral que gira em torno dessas questões. A história pode efetivamente ser interpretada como um vislumbre dos primeiros passos dos mesmos humanos de muitas e muitas gerações depois, que povoam Diários de um Robô-Assassino, com Greggy sendo não só uma versão antiga da tecnologia utilizada em Gurathin, como também o primeiro passo para o desenvolvimento da tecnologia que torna possível a construção de androides como Muderbot. Pode ser que a autora não queira, por suas próprias razões, dizer que Obsolescência não é oficialmente canônico, mas diria que é impossível ler esse conto sem fazer mentalmente a ponte e sem desejar que Wells mergulhe nesse passado remoto do fascinante universo que criou.

Contido em: Takes Us to a Better Place: Stories
Editora: Robert Wood Johnson Foundation
Data de publicação: 2019
Páginas: 31

Compulsório
(Compulsory)

Originalmente publicado em 2018 na revista Wired, provavelmente como forma de divulgar a então razoavelmente desconhecida série literária, Compulsório ganhou mais corpo por Martha Wells e foi republicado em 2023, com a série já consolidada. Enquanto a versão original tinha apenas uma página (que ainda é acessível gratuitamente no site da Wired), a definitiva tem oito e não é mais gratuita, ainda que custe menos de um dólar, e lida com Muderbot em algum momento depois que ele hackeia seu módulo de controle, mas antes de ele conhecer a Dra. Ayda Mensah e sua equipe, em Alerta Vermelho. E esse é o maior valor do conto, ver mais do querido androide nesse momento de transição, já que há muito pouco dele pré-Mensah na primeira novela.

Wells é cuidadosa em não escorregar na maneira como ela retrata seu protagonista aqui. Sim, ele narra a história em primeira pessoa como é o padrão, mas percebe-se mais frieza, mais distanciamento nele e menos daquele sarcasmo anti-humano que o marca. Mesmo que o conto talvez retrate a primeira vez em que Murderbot decide arriscar-se por um humano – sem tecnicamente precisar, vale salientar -, já que a história é sobre o resgate de uma mineira depois de uma briga, o protagonista ainda não está revestido de sua pegada mais sardônica, mais impaciente. Claro que ele fica irritado por ser interrompido durante o episódio #44 de A Ascensão e Queda da Lua Santuário, sua série favorita, mas suas reações são diferentes, bem mais relutantes e também mais mecânicas, ainda que, obviamente, ele permaneça perfeitamente identificável pelo leitor.

Claro que, com tão poucas páginas, tudo o que Compulsório consegue ser é um fragmento de história, alguns minutos na vida pós-hackeamento de Murderbot, por mais importantes que eles possam ser. Sem dúvida funciona, mas ele funciona mais sendo imaginado como um flashback do protagonista em algum dos livros, já que, solto, sem contexto, a narrativa não tem lá muito impacto e se torna, apenas, uma curiosidade.

Editora: Wired (Condé Nast Publications) (versão original); Subterranean Press (versão estendida lida para a presente crítica)
Data de publicação: 17 de dezembro de 2018 (Wired), 28 de julho de 2023 (Subterranean)
Páginas: 8

Lar: Habitat, Alcance, Nicho, Território
(Home: Habitat, Range, Niche, Territory)

Disponível gratuitamente no site da Reactor, ex-Tor.com (e por meio de um módico pagamento via Amazon.com, em formato de livro digital), Lar: Habitat, Alcance, Nicho, Território é um conto que se passa logo após Estratégia de Saída, em que a Dra. Ayda Mensah é sequestrada pela vilanesca corporação GrayCris e mantida em cativeiro em TranRollinHyfa até que, claro, a Unidade de Segurança favorita de todos, o Murderbot, a liberta, aproveitando para acabar de vez com a referida empresa e encerrar o arco narrativo macro iniciado em Alerta Vermelho. Narrado em terceira pessoa, o foco da breve história é primordialmente em Mensah que, enquanto externamente precisa lidar com a burocracia sobre seu retorno e sobre o status do Robô-Assassino na Estação  Preservação, internamente aborda seu trauma e as consequências psicológicas dele, algo que é alvissareiramente ecoado no próprio Robô-Assassino que tem participação transversal na narrativa.

Não há ação, não há momentos de tensão e nada parecido com uma estrutura narrativa clássica. Trata-se, quase que exclusivamente, de um olhar para Mensah sob exatamente esse ponto de vista traumático de seu sequestro, com a inteligentíssima líder planetária precisando conciliar seus afazeres com o que sente e chegar a uma conclusão sobre seu salvador cibernético. E, como tal, o conto só faz sentido se encarado pelo leitor como um epílogo de Estratégia de Saída, algo que Martha Wells poderia até mesmo ter utilizado em sua novela, mas que talvez sabiamente tenha deixado de fora por parecer demais uma ponta solta que ficaria perdida no todo. Em outras palavras, o formato escolhido foi definitivamente o melhor, criando uma curiosidade séria e relevante para o leitor, mas sem pesar na história anterior.

Wells usa a oportunidade para salientar com ainda mais clareza os laços forjados em meio à ação desenfreada entre Mensah e Murderbot, com ambos lidando com questões psicológicas semelhantes, com um momento breve, mas belíssimo em que o androide mostra-se absolutamente pronto para fazer o que for preciso pela segurança de sua “humana favorita”. Da mesma maneira, é muito interessante ver como Wells constrói e imediatamente dissipa as dúvidas muito humanas de terceiros – filtradas por Mensah – sobre o robô senciente e como ele parece então caminhar justamente na direção que o vemos tomar já no começo de Efeito de Rede, que pode ser classificado como o começo de uma segunda temporada literária. É um interlúdio cuidadoso e importante entre “fases” que merece muito ser lido por quem acompanha a jornada de Wells por esse seu fascinante universo.

Editora: Tor Books (Reactor)
Data de publicação: 19 de abril de 2021
Páginas: 20

Rapport: Amizade, Solidariedade, Comunhão, Empatia
(Rapport: Friendship, Solidarity, Communion, Empathy)

Rapport: Amizade, Solidariedade, Comunhão, Empatia, o mais recente conto de Martha Wells dentro do universo de sua série literária Diários de um Robô-Assassino está, assim como o anterior, disponível gratuitamente no site da Reactor, ex-Tor.com e, por meio de um módico pagamento via Amazon.com, em formato de livro digital, e lida não com o Robô-Assassino ou algum de seus humanos favoritos, mas sim com T.E.D., sigla jocosa e secreta para Transporte Exploratório Desgraçado, a I.A. que controla uma nave de transporte que conheceu Murderbot em Condição Artificial. Aqui, Wells mostra que é perfeitamente possível contar uma história em que o protagonista é uma voz incorpórea apenas, mesmo que seja na forma de um conto, o que, claro, facilita tudo, mas qu nos faz pensar se não seria um desafio interessante se ela tentasse um dia encarar uma novela sobre Periélio – ou Peri – o nome verdadeiro da I.A. ou, pelo menos, o nome com que sua tripulação humana o batizou.

O que a autora revela, aqui, é muito interessante e, diria, fascinante e até inesperado considerando a personalidade mais fria, distante e calculista de Peri: ela aborda os efeitos profundos que a conexão de Peri com Murderbot exercem em Peri, algo que, confesso, não esperava nem de muito longe. Tudo se passa durante uma missão de infiltração da tripulação de Peri em uma estação corporativa com o objetivo de furtar um módulo habitacional pré-Orla Corporativa, missão que é apenas e tão somente uma desculpa narrativa para permitir que Peri faça uso de suas novas habilidades que, ato contínuo, o leva a ter uma conversa com a jovem Iris, que tem uma conexão maior com ele. As revelações sobre os efeitos de Murderbot em Peri ocorrem em dois níveis, o prático e o psicológico, com o primeiro – basicamente a capacidade que Peri passa a ter, aprendida a partir do contato com Murderbot, de hackear os sistemas de segurança e as câmeras na base infiltrada e que serve como instrumento para Iris usar como ponte para algo mais profundo, para uma conversa sensacional com a I.A. que faz de tudo para guardar segredo sobre o Robô-Assassino.

Pode parecer exagero, mas o que diferencia Wells de outros autores de ficção científica recentes é sua capacidade ímpar de humanizar seus personagens artificiais de uma maneira crível e lógica, sem jamais esquecer que eles são, na origem, construtos criados pela mente humana e não seres viventes no sentido clássico da expressão. Se o Robô-Assassino trafega de um ser artificial com vontade própria para um humano artificial que muitas vezes é mais humano que os humanos, muito disso se dá por ele ter a forma humana, especialmente um rosto humano. Peri não tem essa facilidade por ser justamente um programa de computador sem rosto que está embebido no sistema operacional de uma nave de transporte, mas mesmo assim Wells é, aqui, capaz de elevá-lo para além de uma I.A. poderosa com uma conexão mais desenvolvida com seus humanos e com Murderbot, transformando-o realmente em uma entidade de natureza semelhante à Unidade de Segurança, com direito a sentimentos inesperados que enriquecem sobremaneira o personagem e levam até mesmo a uma reinterpretação de seu atos nas obras cronologicamente posteriores aos eventos retratados aqui. Sim, eu quero uma novela protagonizada por Peri para ontem!

Editora: Tor Books (Reactor)
Data de publicação: 11 de julho de 2025
Páginas: 34

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