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Crítica | Dias na Birmânia, de George Orwell

Colonialismo, racismo e solidão.

por Ritter Fan
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Eric Arthur Blair nasceu na Índia colonizada pelos britânicos, mas, com um ano de idade, foi para a Inglaterra onde cresceu e estudou, retornando para o Oriente em 1922 depois de terminar a escola, para trabalhar como policial da Polícia Imperial Indiana na Birmânia, hoje Mianmar, onde sua mãe havia crescido e onde sua avó materna ainda morava. Somente em 1927, quando contraiu dengue e voltou para a Inglaterra para se tratar, Blair começou a se transformar em George Orwell, escrevendo artigos e, em 1933, publicando seu primeiro livro, a obra de não-ficção Na Pior em Paris e Londres em que usou sua vivência jornalística como um completo despossuído nas duas capitais para um relato contundente de um submundo ignorado pelos mais abastados.

Sua experiência na Birmânia, porém, jamais foi esquecida e ele, enquanto escrevia sobre suas experiências em Londres e Paris, também rascunhava o que acabaria sendo seu primeiro romance ficcional – um roman à clef que por ser o que era lhe causou problemas para publicá-lo -, processo esse que demorou de 1928 a 1933, na verdade. Sua visão realista e cáustica do colonialismo britânico na Birmânia (ou, por extensão, em qualquer outro lugar, obviamente) causou trepidações em seu editor Victor Gollancz a ponto de a obra ter sido originalmente publicada nos EUA, pela Harper & Brother, em 1934, na vã esperança de que um oceano de distância criaria a blindagem necessária. Obviamente que não adiantou e as reclamações vieram, com Gollancz só voltando atrás e publicando Dias na Birmânia na Inglaterra (em meados de 1935) depois que Orwell garantiu (falsamente) que seus personagens era fictícios e que algumas mudanças de nomes foram feitas aqui e ali. Novamente, de nada adiantou e muita gente vestiu a famosa carapuça e ficou “indignado” pelas acusações feitas muito diretamente.

E a obra é, de fato, de cunho quase que exclusivamente acusatório, com um tom inclemente em que Orwell condena o colonialismo nas palavras de John Flory, o protagonista britânico radicado há duas décadas por lá que é acusado por seus pares do vilarejo fictício de Kyauktada (nada discretamente baseado em Khatar, onde o autor estivera lotado) de simpatizar com os nativos e, por isso, ser um “bolchevique”. Em outras palavras, Flory, um homem culto e que adora as artes, é uma “versão” do próprio Orwell, ainda que isso não signifique, de forma alguma, que o personagem seja abordado exclusivamente como uma boa pessoa e sem defeitos. Muito ao contrário, quando o leitor é apresentado a Flory, ele é um alcoólatra que passa os dias em torpor tentando evitar qualquer tipo de enfrentamento com seus colegas britânicos no exclusivíssimo clube local em que nativos só entram como serviçais, ou seja, ele não faz nada ativamente por ninguém, nem mesmo por seu único amigo, o local Dr. Veraswami que, por sua vez, idolatra Flory e os britânicos em geral. Além disso, o protagonista tem uma amante birmanesa que ele literalmente comprara de seus respectivos pais por alguns trocados há algum tempo e que ele trata como não mais do que uma prostituta qualquer. Sua vida desregrada é, inclusive, refletida fisicamente em seu rosto que é marcado por uma mancha de nascença que ele considera horrível e faz de tudo para esconder tanto quanto possível.

Mas tudo muda quando, nesse fim de mundo quente e úmido em que vive, Elizabeth Lackersteen, jovem sobrinha de um casal de britânicos que vive em Kyauktada se muda para lá depois que ela se torna órfã. Flory, em sua solidão, imediatamente apaixona-se pela moça que, por sua vez, quase não liga para ele, o que inicia um processo de cortejo que conta com passeios pelo vilarejo, expedições de caça e outros momentos que tendem a aproximá-los. Elizabeth, porém, é a antítese de Flory, pois ela não só odeia qualquer manifestação artística por considerar a arte como a razão para seus infortúnios, como é a prototípica britânica da época que, mesmo sem ter sequer onde cair dura, considera os nativos sujos, feios e que mal prestam para serem empregados tratados com tanto respeito quanto um cachorro vira-lata. Por trás dessa “história de amor”, há um trama mesquinha capitaneada pelo magistrado birmanês obeso, corrupto e vil U Po Kyin (“U” é um honorífico, eu sei, mas ele é sempre chamado com esse elemento no romance) que deseja destruir a reputação do Dr. Veraswami para seus fins próprios, o que, claro, afeta diretamente o passivo Flory.

O pano de fundo narrativo que Orwell constrói é interessante por si só, com o desenvolvimento da história se segurando bem mesmo quando o autor usa truques “baratos” para manter o suspense, como quando ele mais de uma vez cria situações artificialmente inusitadas para evitar que Flory peça Elizabeth em casamento. No entanto, a grande verdade é que o pano de fundo é mesmo, apenas, o pano de fundo. O que interessa a Orwell é sua crítica, é usar seus personagens para trabalhar as diversas facetas daquilo que vivenciou na Birmânia. E o retrato que ele pinta é absolutamente asqueroso. Para começo de conversa, o racismo é direto, inequívoco e até difícil de ler. Mas que fique claro: o racismo dos personagens, não de Orwell! O autor basicamente usa o racismo contra os nativos e a suposta superioridade do homem branco europeu “puro” (porque os de raça misturada são execrados pelas duas raças que os criaram!) como matéria prima para todo o seu desenvolvimento narrativo. Se Flory admira os locais, ele o faz de sua maneira peculiarmente passiva, sem levantar um dedo sequer em defesa de quem quer que seja (sim, Orwell, em determinada altura, o leva a atos que parecem querer redimi-lo, mas isso nunca chega a ter o efeito completo) e, mais ainda, sendo seletivo com sua admiração que está focada quase que exclusivamente no Dr. Veraswami e, mesmo assim, com limitações. Flory, portanto, mesmo sendo o “iluminado” da história, é nojento de seu próprio jeito inafastavelmente superior.

E o que dizer dos demais? Elizabeth é a aristocrata britânica falida que corre atrás de um marido (desde que ele seja branco e europeu, obviamente) e basicamente ignora a existência dos nativos, ficando enojada quando Flory fala bem deles ou de sua cultura. O tenente Verrall, que entra bem mais para a frente na história, é um policial militar que trata melhor seus cavalos do que as pessoas e, aqui, quero dizer quaisquer pessoas, mesmo as brancas como ele. Claro que os nativos então são como manchas na paisagem. Mas é Ellis, um dos membros do clube, que é a epítome do racista odioso que chama os nativos dos piores nomes, ridiculariza Flory por ele trocar palavras com o Dr. Veraswami e só tem vitriol a destilar contra qualquer um que não tenha sua cor de pele e sua origem, abertamente defendendo o massacre dos locais sempre que pode em razão de rumores sobre rebeliões e assim por diante. Se alguém, lendo o livro, achar que Ellis é “exageradamente racista para ser realista”, eu indago em que mundo esse alguém vive…

Mas o reverso da medalha é também verdadeiro para Orwell. Veraswami é o “capacho” servil dos britânicos que considera a colonização uma bênção e que seu país – a Índia em geral dada a situação geopolítica da época – jamais chegaria à civilização sem a interferência europeia. Ko S’la, servo de Flory, é semelhante a Veraswami, mas na devoção absoluta a seu mestre que ele chama jocosamente de divindade e realeza. Ma Hla May, a amante de Flory (ou será que podemos tirar o véu e chamar de escrava sexual logo?), faz o que tiver que fazer para conseguir o dinheiro que quase imediatamente gasta no bazar ou usa para mostrar a seus pares o quão importante é por ser “mulher” de um europeu. Finalmente, U Po Kyin é o epítome da vilania abjeta, mas que, diante do racismo aberto e basicamente irrestrito dos europeus, tem seus atos até empalidecidos, talvez sendo essa até a intenção original de Orwell, ou seja, permitir uma ponte comparativa em que o leitor conclua que o dito vilão não se compara nem de muito longe à vilania da colonização em si.

Ou seja, se o objetivo de George Orwell era usar sua experiência de vida ainda tenra para cutucar violentamente seus compatriotas e a política exterior britânica, ele definitivamente conseguiu. Dias na Birmânia é uma visão infelizmente sóbria do colonialismo e, mais do que isso, do racismo que corre nas veias da humanidade quase que como parte de seu DNA. Em seu primeiro romance de ficção, o autor que anos depois traria ao mundo A Revolução dos Bichos e 1984, falha miseravelmente em sua missão de ficcionalizar o que viu e, ao falhar (propositalmente, óbvio), ele entrega uma obra que não perdoa ninguém e condena todo mundo, talvez até mesmo ele próprio.

Dias na Birmânia (Burmese Days – Reino Unido, 1934)
Autor: George Orwell
Editora original: Harper & Brothers (EUA) e Victor Gollancz (Reino Unido)
Data original de publicação: 25 de outubro de 1934 (EUA), 24 de junho de 1935 (Reino Unido)
Editora no Brasil: Companhia das Letras
Data de publicação no Brasil: 29 de janeiro de 2008
Tradução: Sergio Flaksman
Páginas: 360

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