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Crítica | Diomedes – A Trilogia do Acidente

por Luiz Santiago
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Também chamada de O Enigma de Enigmo, essa “trilogia em quatro partes” (porque o último volume foi dividido em tomos 1 e 2), de Lourenço Mutarelli, é uma das mais criativas histórias detetivescas de caráter noir dos quadrinhos latino-americanos.

Surgida em um momento de crise na vida do autor, que começou fazendo o primeiro volume como hobby, enquanto trabalhava em ilustrações pra livros de RPG na Editora Devir, A Trilogia do Acidente acompanha um incompetente detetive chamado Diomedes, que apesar de nunca ter resolvido um caso, mantém um escritório com um olho na porta e uma aparente “fama” a zelar. Surpreendentemente ele possui clientes esporádicos. E é um desses clientes, Hermes, que faz a vida do barrigudo, sedentário, piadista e asqueroso detetive virar de cabeça para baixo.

O primeiro volume da trilogia, O Dobro de Cinco, é uma obra-prima. A partir de uma solicitação de Hermes, que vai a Diomedes à procura do mágico Enigmo (há fortíssima influência do clássico Mandrake aqui), um mundo de diversas compleições literárias e quadrinísticas começa a se desdobrar em tantas variantes que o leitor desacredita da riqueza da obra. De todos os quatro livros da trilogia, O Dobro de Cinco é o mais bem escrito, com as ilustrações (grotescas) mais interessantes — porque se adéquam como uma luva ao mundo decadente e rançoso do protagonista — e que melhor delineiam o universo desse ex-policial que ora se vê envolvido em algo que mescla realismo fantástico, cinema, As Aventuras de Tintim, circo, sexo, crítica social e tarô.

O segundo volume, O Rei do Ponto, é excelente, mas não tão bom quanto O Dobro de Cinco. Mutarelli quebra aqui a sua costumeira forma de tratar os personagens ao final da história, não matando Diomedes e fazendo com que ele vivesse para contar suas aventuras nos livros posteriores. O que talvez faça as coisas mudarem um pouco de qualidade geral é a alteração de ritmo investigativo. Eu entendo perfeitamente que estamos em um outro momento, outro volume e a história precisava se desenvolver, mas minha aceitação para o escanteamento de Enigmo não é completa. O mágico ainda chama a atenção de Diomedes, mas a sua procura não é mais o foco do roteiro.

Assim como uma grande mudança no estilo artístico, que embora ainda represente ambientes do tipo “boca do lixo” ganhe arte mais bem finalizada, O Rei do Ponto tem andamento refinado e relações curiosas com a literatura (Glauco Mattoso, o grande poeta maldito paulistano, aparece como coadjuvante em uma parte da narrativa). É basicamente uma outra história, não uma continuação do livro anterior, mesmo que Enigmo e sequelas de sua “participação” na abertura reapareçam.

Mas nada é tão difícil de classificar como A Soma de Tudo (divido em partes um e dois), a última fase da saga. Após ser convidado e ter uma das melhores recepções de sua carreira no Festival da Banda Desenhada de Amadora, em Portugal, Mutarelli não conseguiu deixar o país dos nossos ancestrais históricos de lado e fez com que a jornada de Diomedes acabasse na terra de Cabral. Essa mudança extrema de ares me soou um pouco forçada (apesar de não ser mal escrita) encaixando peças a um custo grave para o roteiro. Isoladamente, A Soma de Tudo é sensacional. A sequência em que Diomedes vai até a feira/exposição de quadrinhos é metalinguagem pura e uma das melhores do gênero. Mas vista no todo ela está um pouco perdida, relacionando, às vezes a fórceps, a trama de Enigmo ao novo cenário.

O importante em A Trilogia do Acidente é que não existe um volume ruim e a riqueza da jornada é gigantesca. Além dos já citados Tintim e Mandrake, o leitor vê Asterix e Obelix, Hulk, Thor, Capitão América, Homem-Aranha, Pikachu, Tex, Popeye, Archie, Corto Maltese, Gaston Lagaffe, Maus e inúmeros outros personagens de artistas brasileiros e estrangeiros desenhados; personagens que, direta ou indiretamente, contribuíram para a formação geral da história de Diomedes, um amálgama bem brasileiro de todas essas nuances aventurescas. Gosto muito do miolo desse terceiro volume, especialmente o capítulo Amadora, onde acontece a feira de quadrinhos e onde vemos todos esses personagens circulando e interagindo.

Não há dúvidas de que Diomedes – A Trilogia do Acidente seja um dos mais interessantes e ousados trabalhos de quadrinhos autorais no Brasil. Pouco depois Mutarelli se tornaria conhecido pelo sucesso de seus romances O Cheiro do Ralo (2002) e O Natimorto (2004), ambos adaptados para o cinema. Mas Diomedes é de antes de tudo isso. Um personagem baseado no pai do autor e que se tornou um marco para a nona arte no Brasil. Ele é um filósofo de boteco que, de tão estranho, se tornou amado pelo leitor, quase como um efeito de Síndrome de Estocolmo através das páginas, um feito que torna a obra inesquecível e nos faz pensar nas “ninharias dos subúrbios”, em tudo aquilo que torna o povo uma das coisas mais difíceis de se analisar ou decifrar. Existem muitas forças, ideias e motivações envolvidas em sua jornada. Da micro para a macro História, a trama dessa Trilogia do Acidente nos tira do cotidiano mais banal possível e nos joga em uma saga de tragédias com o melhor e o quase impossível típicos das histórias em quadrinhos.

Diomedes – A Trilogia do Acidente ou O Enigma de Enigmo (Brasil, 1999 — 2001)
Editora:
 Quadrinhos na Cia. – Edição especial
Roteiro: Lourenço Mutarelli
Arte: Lourenço Mutarelli
432 páginas

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