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Crítica | Divino Amor

por Gabriel Carvalho
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“Quem ama não trai. Quem ama divide.”

O longa de Gabriel Mascaro não sugere carros voadores ou grandes conquistas tecnológicas para costurar a sua tese. Por meio do gênero da ficção científica, o cinema e a arte majoritariamente avançam no tempo, avançam nas tecnologias, para criticar a sociedade como é hoje, antecipando os próximos passos. O argumento do seu projeto, porém, traz consigo uma imaginação do amanhã que, ao menos na superfície, é modesta, mesmo que bem perturbadora em sua essência. Os mais típicos avanços do gênero, como é uma máquina que extingue as carteiras de identidade, são usados para provocar contrastes. Numa comparação entre as questões sociais progressivas e as retrógradas, pontua-se o que se encontra de equivocado nesse Brasil. Enquanto a burocracia, nesse sentido, supostamente terminaria, em vista de uma tecnologia que minaria o reconhecimento manual dos cidadãos, os retrocessos continuam em outras instâncias. No cartório em que Joana (Dira Paes), a protagonista, é empregada, a personagem usa a sua profissão para impedir os processos de separação de vários casais, tentando os converter a sua congregação evangélica, onde o amor num matrimônio não pode ser revogado. Gabriel Mascaro conclui: as problemáticas distópicas, portanto, não nascem necessariamente do governo, mas por se misturar com a religião.

Diferentemente de outras obras que pensam o amanhã, Mascaro não se interessa por atravessar um tempo muito grandioso para poder ilustrar os seus maiores medos. Enquanto outras produções pensariam a água ou a gasolina como grandes cobiças, a religião torna-se aqui a maior mercadoria das pessoas. Essa é uma distopia que imagina o Brasil logo em 2027, colocando o fanatismo para estar em oposição às melhorias, aos milagres científicos – e até mesmo aos religiosos, como a chegada de um novo Messias insinua. Tal universo, entretanto, acumula enormes contradições. Ao mesmo tempo que Joana consegue trazer novos membros para a sua igreja, a personagem não consegue ter uma criança com o seu marido, Danilo (Júlio Machado). Consequentemente, com o interesse de estimular os contrastes que propõe para moldar essa sociedade pretensa, o cineasta explora espaços religiosos de maneira curiosa. Nasce uma obra que possui os seus potenciais visuais, principalmente no estabelecimento de um universo muito próprio. Certas premissas são estimulantes, como os curiosos encontros do grupo do Divino Amor, progressivamente mais e mais excêntricos. Lá, acentua-se a iluminação em neon e, assim, um ar futurista, mas sem a tecnologia, pensando estes ambientes para serem os centros das atenções, mais chamativos que os externos.

Dada essa iconografia, a religião é o que marca o futuro da nação, mas um futuro de contradições. De uma conceituação apurada, surge, no entanto, uma execução narrativa menos criativa. Joana, em certa cena, exclama que queria tornar a burocracia mais humana, expondo a sua tragédia de uma forma verborrágica. No caso, temos uma personagem que acredita estar pregando o bem, contudo, que, na realidade, sustenta-se em verdades hipócritas, prestes a perceber que apenas pode contar consigo mesma. Dessa maneira, prenuncia-se a chegada de um Messias por meio de um caráter aparabolar, presente nas narrações de uma criança – que, às vezes, são gratuitas para a narrativa, mas impulsionam um teor alegórico. Porém, ao passo que existe um drama decente na desgraça da protagonista, que sofre em meio às contradições do mundo em que se encontra, a associação de contrastes é rapidamente desgastada. Que supusesse os tais moralismos – os no marido, por exemplo – e entendesse este mundo que mistura a religião a demais questões. O longa, entretanto, preocupa-se somente em nos notificar que contradições existem, vagamente. Torna-se secundário, assim sendo, um envolvimento dramático que era supostamente importante, priorizando, em contrapartida, uma criação iconográfica, menos inteligente que Mascaro pensa ser.

Mesmo assim, o cineasta pensa algumas cenas e contraposições intrigantemente, porque pega elementos já gastos, como a iluminação em neon e as cenas de sexo, e os usa com propósito. Por exemplo, a nudez de personagens secundários, enquanto os seus corpos são purificados na água, é pura em uma primeira cena. Mas, na próxima vez que o mesmo evento acontece, mostra-se o depois. A carne, portanto, ganha um significado mais agressivo, que nos provoca a repensar o que é esse credo em questão. O problema mora em outros momentos do longa, principalmente em uma conceituação que exagera a sua grandeza. Eis, por exemplo, o drive-thru em que Joana passa com o seu carro para orar com um pastor. Mascaro precisa justamente expor uma placa no exterior do ambiente, dando um caráter cômico, como também na cena do pênis suspenso ou dos religiosos rolando no chão. Por ser uma obra que se propaga de maneira muito mais austera, isso confunde, e, com uma pose vagarosa que não se embriaga nem para o melodrama, o seu impacto é minimizado. O projeto parece ser, com isso, uma esquete do Porta dos Fundos, mas antes das expectativas serem quebradas e Fábio Porchat surgir como Jesus. O longa enfoca-se, no entanto, na seriedade anterior à piada, trazendo, sem ter a comédia, uma crítica social um tanto incompleta.

Divino Amor – Brasil, 2019
Direção: Gabriel Mascaro
Roteiro: Rachel Ellis, Esdras Bezerra, Lucas Paraizo, Gabriel Mascaro
Elenco: Dira Paes, Júlio Machado, Emílio de Mello, Teca Pereira, Mariana Nunes, Thalita Carauta
Duração: 100 min.

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