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Crítica | Do Inferno

por Guilherme Coral
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Em toda a história da Inglaterra, poucos são os períodos que se tornaram tão emblemáticos quanto a Era Vitoriana, marcado pelo reinado da rainha Vitória, entre 1837 e 1901. Representando todos os avanços gerados pela industrialização, caracterizada pela Pax Britannica e incentivando um retorno à arte gótica, essa era de Vitória foi uma das mais contempladas em obras de ficção, servindo como base, inclusive, para o steampunk, subgênero da ficção científica. Dentre essas produções, não temos como não destacar Do Inferno, de Alan Moore e Eddie Campbell, que perfeitamente resume todas as mudanças desse período, focando na figura de Jack, o Estripador, que atua como uma espécie de emissário do que estaria por vir, algo que ele próprio considera estar fazendo em suas cartas “Do Inferno” (From Hell, no original), que garante o título dos quadrinhos em questão.

A intenção do roteiro de Alan Moore não é fazer um whodunnit (quem matou?), criando a tensão no leitor ao estabelecer o suspense em relação à identidade de Jack. Não, logo cedo já descobrimos quem é o assassino e qual a sua motivação, com Moore já nos oferecendo dicas desde as primeiras páginas. Dito isso, a obra funciona mais como um estudo sobre a época que retrata, lidando com diferentes aspectos sociais e de sua economia. Além disso, a própria psiquê do serial killer é colocada em jogo, com o roteirista, é claro, inserindo aspectos de sua formação no ocultismo, similarmente ao que vemos em suas outras produções, como Watchmen.

Logo nas páginas iniciais podemos perceber qual a intenção do autor em Do Inferno. Dois personagens dialogam sobre as ideias de Marx, como elas podem afetar o cenário no qual vivem – um deles, então, diz que os trabalhadores estão preocupados em ganhar dinheiro e não fazer parte dessas revoluções. De fato, as palavras de Moore ecoam com a realidade desse período. Estamos falando de uma Era de prosperidade no Reino Unido, não só ausente de grandes guerras, como de protestos em relação ao governo. É a época de ouro da Inglaterra e a sua população reconhece isso, por mais que os problemas sociais ainda existam, visto que estamos falando de um período no qual a aristocracia ainda se vê acima do povo – com o título e as terras valendo mais que o sucesso financeiro e comercial.

É curioso, portanto, enxergar tal era através da proliferação da arte gótica, que reflete tanto na arquitetura, quando na moda e na literatura. Ao mesmo tempo não é tão difícil imaginar como, apesar da prosperidade, as pessoas assumiam um imaginário mais sombrio, ligado ao terror. Estamos falando do limiar do desconhecido, um período no qual a industrialização gerou avanços os quais ninguém esperava. Enquanto isso, o céu das grandes cidades era tomado pelas fumaças da indústria. Não é difícil imaginar, portanto, como as obras de Mary Shelley (ainda que essa precedesse a Era Vitoriana por alguns anos) e Bram Stoker proliferaram nesses anos – uma lidando com o impacto da tecnologia sobre o homem e a outra com o embate entre o passado e esse futuro.

Com um traço mais escuro, parecendo mais um esboço que uma arte-final propriamente dita, Eddie Campbell consegue retratar tais questões perfeitamente. Somos jogados de cabeça nesse universo, uma amálgama do novo e do velho, à fronteira do século XX. As páginas mais escuras remetem, claro, à própria atmosfera das cidades, escurecidas pela fumaça, que funcionam como uma camada extra para bloquear a luz do Sol, que já não é uma constante em razão do costumeiro tempo nublado britânico. Estamos falando de uma obra em preto e branco, mas que é melhor definida pelos seus tons de cinza, que dialogam diretamente com a própria figura de Jack, aqui, atuando à mando da Coroa, mostrando que não se trata apenas de uma história do bem contra o mal e sim como essa figura infame pode ter sido criada justamente por aquele governo que trouxe a prosperidade à Inglaterra.

Ao mesmo tempo, os tons escuros que preenchem os quadros de Campbell trazem a ideia das ruas sujas de Londres, simbolizando como os avanços da humanidade sobressaem à natureza, apagando o verde das árvores, que se transformam no carvão que movimenta todo esse universo. O oculto de Moore, portanto, se prolifera nessa escuridão, não como algo ligado às trevas e sim funcionando por baixo dos panos, além do conhecimento das massas. Esse ponto toma forma através da figura de William Gull, o homem por trás dos assassinatos, o próprio Jack, um Maçom e médico pessoal da rainha. Sua intenção de apagar o constrangimento da realeza é, contudo, apenas a camada superficial de suas intenções.

Retratado como misógino, a persona de Gull sob olhar do autor dos quadrinhos, como dito anteriormente, funciona como o emissário do que está por vir. Ele simboliza o antagonista da luta pelo voto feminino e de todos os direitos da mulher como um todo. Ao enxergar o passado, presente e futuro simultaneamente, temática já abordada em Watchmen, por Alan Moore, o psicopata claramente resume os horrores posteriores àquela época de ouro inglesa, já anunciando a violência que estava por vir, com a chegada das duas guerras mundiais, pouco tempo depois. Mesmo com esse elemento sobrenatural marcando a narrativa, o que, por si só, dialoga perfeitamente com as manifestações artísticas da época, o roteiro transmite um terror com o qual nos identificamos, ao passo que enxergamos nele a realidade que o mundo ainda viveria no século XX. A famosa frase do serial killer, portanto, nunca fez tanto sentido: “um dia os homens olharão para trás e dirão que eu fiz nascer o século XX”.

Do Inferno, portanto, é mais do que a típica romantização da figura do serial-killer, é um estudo de Alan Moore e Eddie Campbell sobre a Era Vitoriana, utilizando Jack, o Estripador não somente como um resumo desse período, mas como um anúncio do que estaria por vir. Contando com uma arte que nos faz mergulhar na Inglaterra do final do século XIX, trata-se de uma obra que nos permite entender todas as mudanças geradas pela industrialização e a prosperidade que o Reino Unido viveu durante o reinado de Vitória, mostrando que, por baixo dos panos, a sociedade ainda era governada pela aristocracia.

Do Inferno (From Hell) — EUA, 1989-1996
Roteiro: Alan Moore
Arte: Eddie Campbell
Arte-final: Eddie Campbell
Letras: Lilian Toshimi Mitsunaga – ‘Miriam Tomi’
Editora original: Eddie Campbell Comics
Editora no Brasil: Veneta
Páginas: 592

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