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Crítica | Doctor Who – 10X10: The Eaters of Light

por Luiz Santiago
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Enfim descobrimos o que aconteceu com a Legio IX Hispana, o famoso destacamento militar dos romanos que estacionou na Britânia (ou próximo a ela) logo depois da invasão romana no local, em 43 da nossa Era. Existem três grandes vertentes históricas que abordam o desaparecimento desses militares e dois anos bem diferentes que marcam o rareamento das fontes históricas sobre a tal Legião. Uma dessas fontes ficou famosa por conta do livro para crianças de Rosemary Sutcliff, escrito em 1954: The Eagle of the Ninth — o livro que Bill diz ter lido e adorado. A linha que a autora segue é de um grupo de historiadores que afirmam que a Legião foi exterminada em batalha contra as tribos nortenhas (atual Escócia) no ano 108. Outro grupo, subdividido em desencontradas explicações, afirma que a Legião desapareceu, na verdade, por volta de 120, mas não na Bretanha e sim em Nimegue (antiga Úlpia Noviômago dos Batavos), onde hoje estão os Países Baixos.

Como na maioria dos episódios históricos de Doctor Who, temos uma tentativa elegante do roteiro em fugir das armadilhas históricas, assumindo uma teoria e evitando datar demais o período, para dar espaço às muitas interpretações possíveis. E com uma ponte entre a atual Escócia e a Bretanha dos pictos, em período de campanhas de invasão romana, além da apresentação do corvo como um símbolo de memória que ganha ares poéticos no fim do capítulo, temos aqui um dos melhores episódios desta temporada. Já no início, o texto de Rona Munro nos apresenta uma ação em continuidade, evitando introduzir a situação pormenorizadamente, ganhando tempo para explorar coisas mais interessantes no interior do capítulo. E como existem coisas interessantes aqui!

Algo que de alguma forma me incomodou nesta temporada foi uma “falta de unidade” entre os episódios, uma linha, uma atmosfera, uma coisa além das críticas feitas nos episódios a uma certa ação humana (nesta 10ª Temporada, à capacidade da nossa espécie em criar coisas maravilhosas mas também fazer impérios políticos e econômicos que não se importam nem um pouco com a vida alheia), um rumo central para a série. Apenas em Extremis tivemos algum ensaio focal de narrativa, costurando a temporada, já com o fortalecimento de Missy como personagem e trazendo um ponto enigmático que atravessou o arco dos Monges (especialmente The Pyramid at the End of the WorldThe Lie of the Land), chegando em Empress of Mars com uma surpresa e uma dúvida que não se resolveram, mas tiveram maior sentido dramático neste excelente The Eaters of Light.

Por um momento eu lamentei que a produção não tenha colocado mais romanos e mais pictos em cena, mas conforme o episódio avançava e crescia em valores, notei um tom mais íntimo para os personagens, com núcleos amadurecendo rápido e com acertada duração de tempo em tela, agindo de maneira coerente dentro de cada situação; Bill e o simpaticíssimo Lucius, vivido por Brian Vernel, o Bala-Tik de Star Wars: O Despertar da Força, são os maiores exemplos disso, mesmo conversando sobre sexualidade em um cenário de fuga onde há um gigante gafanhoto comedor de luz (mais sobre isso adiante). Aí se destaca a harmonia com que elementos desses dois blocos se misturam, primeiro de maneira ideológica, como na cena em que romanos e pictos falam e ouvem sobre os horrores da guerra; depois, a presença irônica do Doutor, que assume uma postura muito parecida com o arco de guerra dos Zygons na Temporada passada, mantendo um plano e, ao mesmo tempo, fazendo com que as frentes em luta entendam a insanidade na qual estão inseridos.

Mas também é possível ver como o roteiro entrelaça passagens simples de tempo, de maneira tão natural, que quase perdemos os ótimos trabalhos de caracterização dos personagens em figurinos (Nardole está demais!), maquiagem e fotografia, esta última, com uma notável inserção de pontos de luz em diversas tonalidades, ao longo do episódio. Esses pontos saltam aos olhos diante da simplicidade histórica na direção de arte e, de certa forma, ganham uma “compensação imagética” nos efeitos para o que existe dentro do portal e na direção de Charlie Palmer, que tem aqui o seu segundo polo favorito em característica de direção: os espaços abertos. O diretor é conhecido de nós desde Smith and Jones, e é um dos poucos que sabem trabalhar bem a câmera para fluir sem trancos, movimentos descartáveis e ângulos estranhos na passagem do claustrofóbico para os grandes planos gerais, padrão que até aqui, apenas este e o duo Human Nature e The Family of Blood lhe permitiram fazer.

Alguns espectadores podem questionar o fato de termos na tela apenas a conversa de Bill respondendo ao flerte do soldado romano e adentrando em uma seara que deixa muita gente desconfortável. É bom lembrar aos desatentos que a conversa tem lugar dois dias depois que Bill estava entre os meninos e que soldados romanos não são iguais aos soldados espartanos, da Antiga Grécia, entre a Guerra Messênia (século VII a.C.) e Batalha de Mantineia (século IV a.C.). Embora criados para a guerra, os soldados romanos depois do ano 100 da nossa Era possuíam cada vez mais uma visão diferente sobre o Império e quanto mais distante de Roma (uh, estamos na Britânia!!!) mais forte era o afastamento ideológico em relação à sede do governo. Talvez os desatentos poderiam se perguntar, apenas por diversão, por que o Império começou a ser “comido” pelas bordas; ou por quê boa parte dos bárbaros entraram paulatinamente no Império, como parte de proteção dos comandantes romanos nas fronteiras. Com isso, quero dizer que o fato de termos soldados adolescentes e jovens na 9ª Legião não é estranho; da mesma forma que não é estranho haver casos de deserção neste período e muito menos desses soldados lidarem com etnias diferentes e falarem sobre sexo e sexualidade. Desde o Imperador Calígula este assunto era um dos tópicos favoritos entre os romanos e permaneceu assim por séculos, até meados do reinado de Constantino, iniciado no ano 306.

Peter Capaldi está mais do que confortável em um contexto histórico, servindo ao mesmo tempo de “guia didático” e “planejador mestre“, fingindo cair em uma armadilha, fazendo uma ótima piada com o fato de estar perdendo a paciência e tendo um dos finais mais potentes que eu já vi na série em termos de construção de personagem, com o pequeno diálogo ao lado de Missy. Novamente percebemos o quão incrível é Michelle Gomez.

Com uma trilha sonora de batalha mesclada de horror e um episódio que funciona como uma pequena viagem do Doutor para provar a Bill alguma coisa e, no meio do caminho, encontram a resposta para um grande mistério da humanidade (eu realmente estou impressionado com a organicidade do enredo de Rona Munro), além de um belíssimo final, The Eaters of Light nos dá aquilo que sempre gostamos de ver em Doctor Who: boas histórias bem dirigidas, produzidas e atuadas. Certamente este estará entre os 5 melhores episódios da temporada.

Doctor Who – 10X10: The Eaters of Light (Reino Unido, 17 de Junho de 2017)
Direção: Charlie Palmer
Roteiro: Rona Munro
Elenco: Peter Capaldi, Pearl Mackie, Matt Lucas, Michelle Gomez, Rebecca Benson, Daniel Kerr, Brian Vernel, Rohan Nedd, Ben Hunter, Sam Adewunmi, Billy Matthews, Aaron Phagura, Jocelyn Brassington, Lewis McGowan, Taynee Lord
Duração: 50 min.

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