Esta 2ª Temporada de Doctor Who tem conseguido manter uma qualidade tão alta que dá até medo pelo que poderemos encontrar pela frente. O fato é que a paixão na produção do show tem superado as minhas expectativas, por afastar-se da aura inicial após o contrato com a Disney que, embora promissor em termos orçamentários e de distribuição para um número maior de pessoas, carecia dessa densidade que agora se agarra a cada nova aventura. Dia de Sorte é mais um exemplo de um drama muitíssimo bem concebido, equilibrando-se entre o intimismo de um texto psicológico/emocional — não só individual, mas também de massas — e a grandiosidade de um thriller sci-fi que mostra a verdade se despedaçando sob o peso de narrativas manipuladas por ignorantes orgulhosos e sedentos de poder, fama e dinheiro. Comandado por Peter Hoar (mesmo diretor de A Revolução Robô), o episódio tem um andamento bem cadenciado (à exceção do ritmo na fase do namorico) e uma atmosfera claustrofóbica e ideológica, construindo uma tensão que volta a brincar com o horror folclórico, mas agora, sob outra linha de ação.
Ruby Sunday retorna à série neste episódio, e não querendo parecer um odiador de Millie Gibson (eu realmente não sou), mas confesso que gosto muito mais dela à margem do Doutor do que como companion. Nesta fase pós-TARDIS de sua vida, a jovem tenta lidar com um trauma sutil, mas palpável, algo esperado de quem já cruzou galáxias, enfrentou monstros e agora passa os dias diante da banalidade da vida terrena (de novo, a excelente questão é levantada: o que acontece quando o Doutor abandona ou se separa de um companheiro de viagem?). É essa Ruby com saudades do Viajante no Tempo que se vê dando entrevista a um podcast onde declara que “alienígenas são reais” e defende a missão da UNIT, assumindo uma voz de clareza em meio a um mar de desconfiança pública. Essa postura contrasta diretamente com a de Conrad (Jonah Hauer-King, em uma atuação hipnotizante e perturbadora), fã obsessivo do Doutor que transforma sua admiração numa cruzada conspiratória (guardadas as proporções, me lembrou o vilão de Prisioneiros do Tempo), alimentando a paranoia de movimentos que rejeitam fatos em favor de slogans e a possibilidade de odiar alguma coisa em grupo. Sua traição, revelada em um momento de virada narrativa, é acentuada por uma impactante trilha sonora em tônica menor, expondo a natureza manipuladora de figuras públicas que criam movimentos messiânicos para “falar a verdade que ninguém fala”… só eles.
A UNIT é bem utilizada aqui, em um escopo mais contido, mas o destaque pleno vai para a poderosa Kate Lethbridge-Stewart de Jemma Redgrave. Se um dia a critiquei, eu não me lembro (hehehe). Aqui, Kate é a espinha dorsal ética, prática e emocional do episódio, enfrentando de maneira completamente inesperada a ameaça que a instituição sob sua tutela corria. Essa postura de ferro, que remete ao Brigadeiro de eras passadas, confronta as mentiras de Conrad com uma fúria protetora, implacável e definitiva. A cena em que ela encara o vilão, com a câmera capturando a tensão em seus olhos, cristaliza o dilema: proteger a humanidade exige, por vezes, uma violência que desafia o ideal pacifista e diplomático. Questões históricas sobre o papel de instituições em tempos de crise, onde a linha entre segurança e autoritarismo se torna tênue, vêm imediatamente à tona, e sabem o que é melhor? Eu duvido que tenha alguém (que não seja um tiozão do zap, claro) que discorde inteiramente da tática de Kate naquele momento.
De forma contida (quem disse que ele não sabe segurar a emoção?), o 15º Doutor aparece nos extremos do episódio, servindo de guia distanciado para os eventos. Ncuti Gatwa, com sua expressividade física, transmite uma aura de controle que é de impressionar, subindo barreiras emocionais diante de Conrad (“você já conheceu Belinda?”), e começando a construir algo que todo whovian adora: a maturidade do Time Lord habilitado para fazer monólogos que ultrapassam a história do episódio e se tornam um marco. Fui eu falar no início da temporada que ainda não tinha visto nuances de mudança nessa 15ª encarnação, os roteiros começaram a mostrá-lo de outra forma. Que bom! E aqui, admito, até Dona Flood, cuja integração à trama já foi motivo de maior desconforto, aparece de maneira orgânica, um avanço gigante em relação às suas participações até Lux.
Dia de Sorte tece uma crítica afiada à desinformação e ao negacionismo, falando da fragmentação da sociedade em grupos que não se comunicam, perpetuando ignorância, divisão e desconfiança institucional. Ao rejeitar o antídoto contra o Shreek (que monstro bacana, hein?) e postar vídeos “reveladores” que “desmentem” a existência de aliens e a proteção da Terra pela UNIT, Conrad personifica a impulsividade de quem privilegia o achismo engessado (e muitas vezes fruto de imensas frustrações pessoais) sobre a razão e as provas, um fenômeno que encontra paralelos em inúmeros movimentos contemporâneos. O roteiro evita o didatismo excessivo, nisso optando por uma sátira mais orgânica, ainda bem. No clímax, a fronteira entre verdade e simulacro se dissolve, quando o influenciador criminoso precisa enfrentar 3 minutinhos de realidade e simplesmente pede arrego: “qual é a sua verdadeira face, Conrad?”. E, como sempre, passado o perigo, a covardia e a nojeira moral de indivíduos assim reassumem o controle, tentando virar o contexto a seu favor.
A simplicidade inicial do namorico entre Ruby e Conrad, embora compreensível como contraste para o impacto da reviravolta, é o único ponto do episódio que parece destoar em qualidade (bem, talvez junto às cenas de organização no prédio da UNIT, logo após o retorno da vila isolada onde a traição acontece). Mas esse pequeno pedaço do episódio cede espaço a uma complexidade que cresce exponencialmente, culminando em algo verdadeiramente memorável. O Doutor e Belinda ainda não conseguiram voltar para 2025 e, ao já estabelecido mistério de D. Flood, me parece que também teremos um mistério envolvendo Conrad, certo? Essas múltiplas camadas de revelação me dão medo. Mas estou gostando tanto dessa temporada, que posso me dar ao luxo de acreditar em um bom Finale. De vez em quando, um pequeno pulo do abismo faz sentido… Qualquer coisa eu gravo um podcast a respeito.
Doctor Who – 2X04: Dia de Sorte (Lucky Day) — Reino Unido, 3 de maio de 2025
Direção: Peter Hoar
Roteiro: Pete McTighe
Elenco: Ncuti Gatwa, Varada Sethu, Millie Gibson, Benjamin Chivers, Kirsty Hoiles, Jonah Hauer-King, Gethin Alderman, Kareem Alexander, Michelle Greenidge, Angela Wynter, Faye McKeever, Madison Stock, Paddy Stafford, Blake Patrick Anderson, Aoife Gaston, Paul Jerricho, Jemma Redgrave, Alexander Devrient, Tina Gray, Ruth Madeley, Lachele Carl, Nicholas Briggs, Anita Dobson
Duração: 50 min.