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Crítica | Doctor Who – 4X10: Midnight

por Rafael Lima
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Nas temporadas anteriores, Russell T. Davies trouxe o conceito dos Doctor Lite: plots com participação mínima do time da TARDIS e que permitiam um respiro na agenda do elenco principal. Mas no 4º ano, Davies tentou algo diferente, começando por Midnight, um Companion Lite, completamente focado no Doutor, com apenas uma pequena participação da Companion. O resultado é um episódio simples, mas muito tenso e bem escrito. Na trama, o 10º Doutor e Donna passam um tempo em um Resort no Planeta Midnight, onde o Doutor decide embarcar em uma excursão para ver as cachoeiras de Safira, mas Donna decide ficar no hotel. Quando o ônibus é obrigado a usar uma rota alternativa, uma criatura passa a rondar o veículo, espalhando o medo nos passageiros.

Midnight dedica o seu 1º ato a apresentar seus personagens de forma simples e econômica. Após um começo bem humorado, onde o Doutor sabota o vídeo de entretenimento do ônibus e propõe aos colegas de viagem que eles conversem entre si, temos uma sequência leve e divertida que contrasta com o que vira a seguir. Quando o ônibus fica preso no meio do nada e a criatura passa a rondar o veículo, a cordialidade de antes dá lugar á um crescendo de tensão, que se origina muito mais da relação entre os personagens do que da ameaça externa, pois o monstro alienígena expôs um monstro muito mais perigoso: o ser humano. 

O vilão da trama (que nunca é visto) é ameaçador, e o roteiro é sábio em nunca revelar o mistério sobre ele, pois nunca ficamos sabendo a sua real natureza ou intenções, o que só torna tudo mais aterrador. Mas na maior parte do tempo (excetuando o choque que mata o piloto e o mecânico quando a criatura entra) o vilão “só” apavora os passageiros imitando-os após possuir uma mulher, pois é o medo deles que causa os maiores estragos. Embora haja um subtexto social claro contra as supostas figuras de autoridade como o professor universitário e os pais do adolescente Jethro, a crítica central da trama se refere à reação da natureza humana ao medo, que faz com que excetuando o Doutor, todos os presentes, mesmo os apresentados de forma simpática, como a assistente do Professor Hobbes e o adolescente Jethro, considerem jogar uma mulher na atmosfera destrutiva do planeta.

Além da crítica social, o roteiro de Davies reflete sobre a estrutura da série. Em Doctor Who, as pessoas veem esse estranho chamado de Doutor surgir do nada em meio a uma crise e assumir a liderança para evitar o pior; mas mesmo com alguma resistência, elas acabam aceitando a sua liderança. Mas em Midnight, quanto mais grave a situação se torna, menos os passageiros confiam no Doutor. O Time Lord usa todos os seus recursos de convencimento: o papel psíquico, o discurso emocional, o apelo à autoridade intelectual, mas tudo só serve para os passageiros se voltarem contra ele. Parte da hostilidade que o 10º Doutor recebe é consequência de preconceito (vide a reação da Sra. Cane diante da possibilidade do Doutor ser um imigrante), e da paranoia provocada pela criatura, que só piora após ela conseguir dominar o Time Lord e roubar a sua voz.

Mas por outro lado, o texto sugere que as dúvidas que os passageiros apresentam sobre as reais intenções do 10º Doutor não são completamente incoerentes. O Doutor, afinal, é um estranho sobre quem nada se sabe; possui um grande conhecimento que nunca se preocupa em explicar como obteve, e sequer é capaz de dar um nome (e é muito interessante como nesta situação, o velho pseudônimo de John Smith é rapidamente reconhecido como um nome falso). O Doutor é uma figura misteriosa por natureza; o que o torna quase tão desconhecido quanto a ameaça que enfrentam e, consequentemente, um forte candidato a ser jogado por essas pessoas apavoradas para fora do ônibus.

Não parece coincidência que Davies escolha desconstruir esse tropo da série em um Companion Lite. Midnight aponta que o papel dos companheiros é vital não só para dar uma referência humana ao Doutor, mas por possibilitar a comunicação do Time Lord com os humanos que ele defende. Davies parece sugerir que sem um companheiro (mesmo que seja de ocasião), o Doutor não consegue estabelecer um elo de confiança com as pessoas em uma crise, pois nestes momentos, ele se foca no grande esquema das coisas, não prestando atenção ás sutilezas humanas. É a figura do Companion que faz a ponte entre o Doutor e as pessoas comuns, permitindo que elas tenham fé no homem desconhecido que saiu de dentro de uma caixa azul.

Parte do que faz o episódio tão assustador é a forma como David Tennant retrata a crescente angústia do Doutor à medida em que os passageiros vão se tornando mais agressivos e irracionais. Nunca o 10º Doutor pareceu tão acuado, e de fato aterrorizado, quanto na cena em que o vemos paralisado e sendo arrastado para a morte certa por essas pessoas comuns que ele está tentando salvar. O trabalho de Lesley Sharp como Sky também merece destaque, especialmente após a personagem ser possuída pela criatura, pois ela transmite o ar insidioso da entidade basicamente com o olhar, e a intenção de voz (já que ela passa a maior parte do tempo paralisada repetindo o que os outros dizem). 

A direção é de Alice Troughton, que entrega um trabalho incrível. Por mais que o elenco e o roteiro fossem ótimos, o episódio ainda precisava de uma direção acurada por se resumir basicamente á um grupo de pessoas discutindo em um cenário. Felizmente, a decupagem, aliada á uma edição eficiente, constrói a tensão claustrofóbica proposta pelo texto de forma exemplar, fazendo um bom uso das camadas do plano, como por exemplo, a escolha por manter a imagem da possuída Sky desfocada ao fundo quando os passageiros começam a se voltar contra o Doutor. A edição de som também tem grande papel na construção da atmosfera do episódio, bastando observar como cada palavra dita soa enervante, pela leve distorção causada pela repetição simultânea da criatura no corpo de Sky.

Sendo o episódio mais barato produzido pela Nova Série até aquele momento, Midnight é cheio de subtextos sociais e antropológicos riquíssimos, além de abordar uma questão interessante sobre como a natureza alienígena do Décimo Doutor pode se voltar contra ele. Mas o que mais assusta no roteiro de Davies não é o monstro invisível que rouba vozes e sim reconhecer que um grupo de pessoas absolutamente normais — e que não são necessariamente más pessoas — pode se transformar em assassinos ou cúmplices omissos com alguns poucos estímulos. Ainda que entregue um raio de esperança em seu desfecho, no sacrifício de um personagem que consegue ter uma ação altruísta, Midnight ainda se encerrar como uma das histórias mais sombrias da série, deixando o espectador perturbado, por saber que ele poderia ser uma daquelas pessoas entregues à mentalidade de manada.

Doctor Who- 4X10: Midnight (Reino Unido, 14 de Junho de 2008)
Direção: Alice Troughton
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: David Tennant, Catherine Tate, Raya Ayola, Lesley Sharp, David Troughton, Ayesha Antoine, Lindsey Coulson, Daniel Ryan, Colin Morgan, Tony Bluto, Duane Henry
Duração: 45 Minutos.

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