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Crítica | Doctor Who 9X11 e 12: Heaven Sent e Hell Bent

por Luiz Santiago
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Spoilers!

Com inesperadas mudanças de rumo e surpresas que deixaram muita gente com reações mistas, a excelente 9ª Temporada de Doctor Who chegou ao fim levando o Doutor de volta para Gallifrey, colocando sua raiva à flor da pele e fazendo-o ir até onde jamais podia, na tentativa de se apegar ao último resquício de paz que lhe restava, à pessoa que lhe trouxe conforto após a chocante partida de Amy e Rory em The Angels Take Manhattan; à pessoa que fez com que ele perseguisse um mistério de identidade e acabasse descobrindo que ela havia se sacrificado e se multiplicado por ele, para salvá-lo; à pessoa que protagonizou seu diálogo com os Time Lords e esteve lá quando suas regenerações esgotadas não eram mais um problema; à pessoa que lutou contra a estranheza da mudança e tentou aceitá-lo em seu novo corpo; à pessoa que, mesmo com um tremendo conflito moral, o acompanhou e acabou se tornando com ele, formando um híbrido de humana e Time Lord (em uma das interpretações para o termo) ou permitindo que ele agisse como um híbrido, em resumo, aquele que “traz a destruição”.

Após perder [Doctor-]Donna em The End of Time, a última coisa que o Doutor queria era perder Clara, que aqui se assemelha muito a [Doctor-]Donna. Ele estava decidido a abandonar todos os códigos e regras que ele mesmo criou para fazê-la [re]viver. Até que um certo encontro ocorrido 5 minutos antes do Universo conhecido ser consumido pela ordem natural das coisas, faz ele se dar conta de que havia ido longe demais. E a raiva, o amor e a obstinação dão lugar à rendição e à constatação de que ele seria, de verdade (e juntamente com Clara, como Ashildr/Me havia teorizado) o híbrido, o destruidor.

Partimos de um episódio de constituição inédita em Doctor Who, onde apenas o Doutor tem falas e assume todas as ações. Claro que existe o vilão, o Veil, e ao final, o garotinho das Drylands de Gallifrey, mas apenas o Doutor fala, um episódio-monólogo desafiador, escrito de forma irretocável por Steven Moffat e contando com uma brilhante direção, assinada por Rachel Talalay, que provou saber trabalhar o “épico em escala mínima” e fazer muito com pouco. É a partir de Heaven Sent que temos todas as migalhas da temporada juntas, além de frases e informações que se referem a outros tempos da série, como a citação do motivo pelo qual o Doutor saiu de Gallifrey, tal qual em The War Games; como a relação dele com o Confession Dial apresentada em The Magician’s Apprentice; como a permanência de um luto ocorrido em Face the Raven e que ganhará proporções épicas à medida que o tempo passa; ou como assumir que sempre está vencendo uma batalha, algo estabelecido por Clara em The Witch’s Familiar… A câmara ou castelo de horrores feito para torturar e/ou assustar o Doutor, serviu como meio de agrupar os temas centrais da temporada, que poderia terminar com uma espécie de “esgotamento dramático” em relação a tudo o que já havia sido apresentado na série até o momento, mas esta questão foi resolvida com maestria no *polêmico* episódio seguinte, sobre o qual falaremos adiante.

Não há dúvidas que Heaven Sent foi o mais intenso e tecnicamente o mais aprimorado episódio de toda a temporada. Peter Capaldi apresentou um de seus melhores momentos na TV, em uma atuação digna de prêmios, e toda a equipe de produção trabalhou com afinco para que o modelo de episódio-monólogo funcionasse bem. A fotografia típica dos filmes de terror e a grande cereja do bolo, a trilha sonora sinfônica de Murray Gold, fecharam o ciclo com chave de ouro. E da solidão intimista, daquilo que deveria ser o “pré-paraíso dos Time Lords”, o Doutor passa, ardendo de raiva, para o “inferno dos Time Lords”, a Matrix, após sua chegada em Gallifrey.

Apesar de Sleep no More ter dividido opiniões, é certamente Hell Bent que carregará a grande polêmica da temporada, não necessariamente pela produção — é preciso ser muito, mas muito ignorante em linguagem audiovisual para não reconhecer a excelência de produção do episódio, especialmente na direção de fotografia e na direção de arte –, mas pelo conteúdo. Remodelar a morte da Clara (que sim, agora é uma espécie de zumbi e sim, vai voltar para o Corvo algum dia, mas pelo visto ainda vai viajar muito ao lado de Ashildr/Me, quase como uma extensão do papel do Doutor que ele sabia interpretar tão bem… Clara Who?) e não fazer uma “história de Time Lords” certamente são duas das grandes mágoas de alguns espectadores e eu entendo perfeitamente esse descontentamento. Mas daí até a negativização plena do episódio porque ele não trouxe o que o maior hype de marketing (embora não de narrativa da temporada) deu a entender, é um pouco… exagerado.

Uma temporada de uma série precisa ser coesa com a sua estrutura temática em uma linha “X” de eventos, correto? Classificamos como boa, uma temporada cujos setores responsáveis pela estética dos episódios + seus roteiros tenham bom desempenho individual (episódio por episódio) e entreguem um coeso mapa geral (o sentido da temporada inteira). Uma temporada pode, claro, ter um finale individualmente “bom” que não seja coeso com a sua estrutura narrativa (ou canônica, se for o caso), mas isso seria um tipo de fan service a que os próprios fãs se sentiriam incomodados. Ou pelo menos boa parte deles. Agora vejamos o caso de Doctor Who a partir de seu cânone:

a) uma série de 52 anos de idade não chegou a esse ponto dando respostas para todos os seus mistérios imediatamente;

b) os focos centrais da temporada foram o relacionamento do Doutor e Clara, o enfrentamento da morte, o mistério do híbrido e o possível encontro de Gallifrey. Embora conceitualmente desnecessário (repito: conceitualmente!) não é incoerente que o arco da Clara fosse reativado para mais uma aventura com o Doutor, já que a temporada teve esse relacionamento como núcleo, juntamente com a morte à espreita. E isso se torna ainda mais coerente à medida que chegamos na raiz do problema: DE QUEM partiu a ideia, em The Day of the Doctor para que Gallifrey fosse salvo? QUEM pediu para que os Time Lords mandassem um outro (ou outros, vai saber…) ciclo de regeneração para o Doutor em The Time of the Doctor? Agora juntem as peças: o homem que atravessou o conflito ético-moral de sua própria identidade na 8ª Temporada e o planeta que de alguma forma conseguiu se descongelar mas acabou nos confins do Universo para sua própria proteção devem a vida a uma única pessoa: Clara Oswald. Percebam que o Doutor se sentiu no dever, como ele mesmo diz na conversa que teve na Matrix, de salvá-la. A atitude é paradoxalmente egoísta (ele precisa dela) e altruísta (ele e Gallifrey devem isso a ela);

c) a esta altura do campeonato creio que a maioria dos whovians sabem muito bem como funcionam as coisas com Gallifrey. Lá, o Doutor é muitas coisas, menos ele mesmo e o quanto menos ele permanecer no planeta, para ele, melhor. Ao despertar a curiosidade de Rassilon (regenerado) e do Alto Conselho, o Doutor dá máxima importância a uma profecia que claramente nem ele sabe direito o que é. O híbrido aqui foi uma isca para trazer Gallifrey de volta, não para trazer uma história de Time Lords. E mesmo assim, mais mistérios interessantes foram colocados em cena, justamente para esquentar as coisas para a 10ª Temporada e para os anos vindouros: quem é a mulher do celeiro? Qual a real relação do Doutor com Ohila? Quais as consequências da pequena Guerra Civil provocada pelo Doutor? Rassilon e o Alto Conselho permanecerão exilados por muito tempo? Buscarão vingança? Quem assumiu o cargo de Lord Presidente de Gallifrey depois que o Doutor fugiu (novamente) e abandonou o cargo (novamente)? Ao contrário do que muita gente pensa, são essas orientações narrativas que dão a oportunidade do showrunner e dos roteiristas convidados pensarem na continuação do universo da série. Até que haja a perspectiva de cancelamento definitivo do show, sempre devem haver mistérios.

Para finalizar, gostaria de destacar a perfeita relação que a diretora Rachel Talalay faz de Hell Bent com os filmes de faroeste e também deixar a minha admiração sobre a forma como ela guiou o elenco, todos eles em excelentes atuações, fazendo de cada núcleo do episódio uma pérola dramatúrgica, com destaque máximo para o trio formado por Peter Capaldi, Jenna Coleman e Maisie Williams.

A diretora estudou com afinco a cartilha do Apogeu do Western Clássico e fez uso do roteiro de Steven Moffat para realizar, tanto nos Estados Unidos quanto em Gallifrey, um episódio-western com derivações temáticas, visuais, musicais e principalmente morais (ligadas ao comportamento dos personagens) de filmes como O Matador (1950), Matar ou Morrer (1952), Rastros de Ódio (1956), Sete Homens e um Destino (1960) e dos dois primeiros longas da Trilogia dos Dólares, Por Um Punhado de Dólares e Por Uns Dólares a Mais. Ao longo do episódio, a relação entre as classes sociais de Gallifrey, a conturbada relação do Doutor com os Time Lords e a sempre perturbadora ação dos TL em relação a quase tudo ao seu redor recebem intenso tratamento dramático, fazendo desse final uma grande homenagem televisiva ao homem solitário que eventualmente possui um companheiro ou uma companheira ao longo do caminho, mas que por diversos motivos sempre acaba sozinho, tentando salvar alguma coisa que ele não sabe exatamente o quê e, ao menos a curto prazo, para quê. Exatamente como os pistoleiros do Velho Oeste, só que ao final, ao invés de cavalos perdidos em uma planície silenciosa, temos duas TARDISes cruzando o espaço e o tempo. Um final perfeito para uma temporada simplesmente exemplar.

Doctor Who 9X11 e 12: Heaven Sent / Hell Bent (Reino Unido, 28 de novembro e 5 de dezembro de 2015)
Direção: Rachel Talalay
Roteiro: Steven Moffat
Elenco: Peter Capaldi, Jenna Coleman, Donald Sumpter, Ken Bones, Maisie Williams, T’Nia Miller, Malachi Kirby, Clare Higgins, Linda Broughton, Martin Sherman, Jami Reid-Quarrell, Ross Mullan
Duração: 45 e 60 minutos

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