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Crítica | Doctor Who: Amor e Guerra, de Paul Cornell

por Rafael Lima
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Equipe: 7º Doutor, Ace e Bernice “Benny” Summerfield
Espaço: Planeta Paraíso
Tempo: 2570

Após o cancelamento da Série Clássica de Doctor Who, o universo expandido deixou de ser apenas um adendo para os fãs, para se tornar o lugar onde o programa teria continuidade. A linha New Adventures se tornou o coração do universo de DW, continuando as aventuras do Sétimo Doutor e Ace, protagonistas do Show quando ele foi cancelado. Mas se os primeiros romances da série mantinham o Status Quo, Amor e Guerra representa um marco ao não só encerrar (pelo menos temporariamente) a história de Ace, mas também introduzir a mais influente e popular Companion vinda do universo expandido: Bernice “Benny” Summerfield.

Na trama, o 7º Doutor e Ace chegam ao Planeta Paraíso, uma colônia dividida entre o império humano e Draconiano, para encontrar um livro que o Doutor gostaria de ter. Em sua busca, a dupla conhece os Viajantes, uma comunidade de andarilhos espaciais da Terra liderada pelo carismático Jan; além da Profª. Bernice Summerfield, uma arqueóloga que trabalha em uma escavação no planeta. Ao mesmo tempo em que o Doutor e Benny descobrem que uma antiga ameaça alienígena que até os Time Lords temem está prestes a tomar o planeta, Ace e Jan se apaixonam. Mas o relacionamento pode não sobreviver ao inferno que está para ser liberado no Paraíso.

À exemplo do romance anterior de Paul Cornell, Timewyrm: Revelação, Amor e Guerra usa a rica mitologia da série para trazer uma história bastante particular, que apesar de assumir uma escala épica e empolgante é orientada principalmente pela relação entre os seus personagens. A construção de mundo e a contextualização das espécies e sociedades que aparecem ao longo da trama são bem feitas; mas o principal objetivo do autor é a introdução de Bernice e, principalmente, o ponto de ruptura na amizade entre o Doutor e Ace, que transforma a jovem de Perivale para sempre. Para uma trama com uma carga dramática tão forte quanto a proposta por Cornell aqui, o Paraíso surge como um cenário bastante oportuno. O planeta é apresentado como um refúgio para aqueles que querem se afastar da II Guerra Dalek (cujo início foi visto em Frontier In Space), ao mesmo tempo em que também é usado para realizar funerais em massa das vítimas da guerra. Paraíso é um lugar de fins e novos começos; uma dicotomia que se comunica bem com os temas da obra. 

Os aliens fungoides Hooth surgem como vilões assustadores, trazendo conceitos de Body Horror e horror cósmico. A obra desenvolve um crescendo de tensão competente em torno destas criaturas, já que inicialmente eles só agem através da Igreja do Vácuo, uma seita religiosa que acredita que o único sentido no universo é a morte. Mas à medida em que a narrativa avança, o autor nos revela mais sobre esses monstros com uma inteligência coletiva, que viajam em naves feitas dos restos mortais de suas vítimas, evocando imagens assustadoras de pesadelos, especialmente durante o 3º ato quando os Hooth executam a fase final de seu plano. O fato de os esporos Hooth serem capazes de contaminar qualquer matéria orgânica, viva ou morta, muitas vezes sem o conhecimento do hospedeiro, dão um elemento extra de suspense, pois qualquer um pode se transformar em um Hooth e ter a sua mente absorvida pela inteligência coletiva a qualquer momento, seja um cadáver ou a pessoa que está do seu lado.

Cornell traz uma atualização dos movimentos jovens de contracultura em um contexto Sci-Fi através dos Viajantes. Tal como os Hippies, eles existem em um cenário de trauma de guerra, sendo adeptos do amor livre como forma de se contrapor à realidade bélica que os cerca. Muitos dos Viajantes são pessoas que fugiram do alistamento na guerra contra os Daleks, ou que lutaram na guerra, mas foram afetadas demais por seus horrores para continuar. O autor trabalha com os clichês Hippies para construir os viajantes, mas não permite que eles virem meros tipos, dando aos principais membros deste núcleo complexidade emocional e um Background rico.

O contexto da guerra também é importante na construção de Bernice Sommerfield, cujo papel começa pequeno, mas que vai crescendo ao virar das páginas. A exemplo dos Viajantes, Bernice teve a sua vida marcada pela Guerra Dalek, tornando-se órfã durante o conflito, ainda que mantenha a esperança de que um dia irá reencontrar o pai desaparecido nos campos de batalha. A obra apresenta Bernice como uma habilidosa arqueóloga, uma mulher de ação determinada, sarcástica, e atrevida, cuja esperteza rivaliza com a do próprio Doutor, a quem ela não se importa de enfrentar quando acha necessário. Bernice não só é uma Companion natural, devido à sua coragem e desejo de viajar e explorar, mas o tipo de companheira que o 7º Doutor precisa neste momento de sua vida. Assim como Ace, ela é fascinada pelo Doutor e pelo o que ele representa, mas diferente da jovem de Perivale, Benny tem a maturidade para não vê-lo como uma perfeita figura heroica, dando a ela a distância emocional que a sua antecessora não tinha para confrontar o Time Lord de forma racional. Quando Benny aceita o convite para viajar na TARDIS, ela declara que o que está sendo firmado é uma parceria (a arqueóloga sequer considera o Doutor um amigo, por ainda não conhecê-lo direito), deixando claro para o Time Lord que os jogos mentais e manipulações terminaram.

O coração de Amor e Guerra, entretanto, está no amadurecimento de Ace, cujo preço é o ponto de ruptura de sua amizade com o Doutor, que sempre sofreu tensão pelas constantes manipulações do Time Lord. A trama é montada como um típico arco de despedida de Companion, ao dar a Ace um interesse amoroso que pode levá-la a partir. O romance entre Ace e Jan é construído como uma paixão intensa e juvenil, algo longe de ser maduro por sua rapidez, mas que é reconhecido dessa forma pela obra, e por isso ganha credibilidade. O livro reforça a lealdade de Ace ao Doutor e o quanto ela o vê como um pai. O trecho onde a jovem discute com o Time Lord a possibilidade de Jan juntar-se a eles é tocante, especialmente depois que ele reprova o romance, o que irrita a moça, mas também a sensibiliza por ela sentir que seu professor se importa com ela, e tema perdê-la. Mas a preocupação do protagonista com o namoro de Ace esconde ações sombrias, que embora tomadas em nome de um bem maior diante da ameaça dos Hooth, representam a maior traição que ele já cometeu à confiança que ela sempre depositou nele. Este não é o fim da jornada de Ace, que voltaria em tramas futuras; mas é o fim da Ace que conhecemos na TV, pois a inocência juvenil dela morre, e é o Doutor que destrói essa inocência.

Embora o 7º Doutor seja pragmático, isso não significa que ele não tenha conflitos. O Doutor tem um plano para combater os Hooth, mas passa boa parte da trama buscando uma alternativa, por saber o custo que a sua vitória terá. O livro traz um grande dilema moral para o Time Lord e para o leitor, pois a trama deixa muito claro o que está em jogo ao explorar o quão destrutivos são os Hooth, mas por outro lado a única solução para detê-los não poderia ser descrita de outra forma que não seja fria e insensível. A obra tem domínio sobre o Doutor de McCoy, captando tanto os aspectos mais leves e farsescos do personagem, quanto a sua faceta mais fria e manipuladora, mas ela também desenvolve o 7º Doutor, trazendo elementos que influenciariam o revival anos depois. Esta é a primeira vez que o personagem é referido como a Oncoming Storm, com a sua fama adquirindo traços mitológicos. O conceito de que o Doutor precisa de um Companion para manter o senso de humanidade diante dos conflitos cósmicos em que se envolve também é trabalhado, com a entrada de Benny na TARDIS sendo em parte construída em torno deste tópico.

Amor e Guerra é um excelente romance da série, trazendo uma aventura de ficção científica com fortes tintas de horror Lovecraftiano, em uma narrativa com reviravoltas muito bem conduzidas por seu autor, que vão se desenvolvendo de forma orgânica em um crescendo dramático que conduzem a um terceiro ato épico e intenso. Mas sendo esta uma história de Doctor Who escrita por Paul Cornell, é a profundidade emocional presente na relação entre os seus personagens que guia a obra. O livro encerra um importante capítulo da história da série, ao quebrar o Status Quo deixado pela Série Clássica com a traumática saída de Ace, mas abrindo uma nova e empolgante, que teria grande influência no futuro do show, quando ele finalmente voltou para a TV.

Doctor Who: Amor e Guerra (Love and War). Reino Unido. 15 de Outubro de 1992.
Autor: Paul Cornell
Publicação: Editora Virgin
Virgin New Adventures # 09
235 Páginas

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