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Crítica | Doctor Who: Colheita Do Tempo, de Alastair Reynolds

Uma carta de amor ao Mestre no cinquentenário de Doctor Who.

por Rafael Lima
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Equipe: 3º Doutor, Jo (+ UNIT, Brigadeiro Lethbridge Stewart, Sargento Benton, Capitão Yates)
Era: UNIT- Ano 05
Espaço: Inglaterra, Planeta Praxillion, Nave Consolidator
Tempo: Anos 1970, Futuro Distante.

Poucos períodos de Doctor Who são tão familiares quanto os anos UNIT. Foi uma época única da série, já que devido ao exílio do protagonista, o show passou a ter uma ambientação assentada, com elementos fixos que iam desde a UNIT, passando pelo carro Bessie, até o Mestre original. Assim, a BBC Books tende a escolher essa era para representar a Série Clássica nos aniversários do programa, como houve no aniversário de 40 anos, e como voltou a ocorrer no cinquentenário, com Colheita Do Tempo, de Alastair Reynolds. Situada entre Day Of The Daleks e The Curse Of Peladon, a trama traz a UNIT investigando o naufrágio de uma plataforma petrolífera. Quando soldados da UNIT passam a se esquecer do Mestre, O 3º Doutor e Jo deduzem que o vilão possui um novo esquema. Ao mesmo tempo, os Sild, alienígenas ligados ao passado do Doutor e do Mestre, atacam a Terra, tendo como alvo o vilanesco Time Lord.

Colheita Do Tempo capta bem a era do 3º Doutor, ao configurar-se como um thriller de ação e espionagem no estilo Guerra Fria, articulado com elementos Sci-Fi. Mas se Reynolds torna o seu livro uma aventura reconhecível do 3º Doutor, ele também não se limita ao pastiche, lançando o seu próprio olhar sobre esses personagens, mas mantendo-se fiel a eles. A obra trabalha com diferentes núcleos e tramas paralelas, mas o autor transita entre esses núcleos com desenvoltura, mantendo a unidade narrativa, de modo a que nenhum dos plots soe deslocado ou sem função dentro do romance. A prosa do autor, por sua vez, é altamente imagética, especialmente nas sequências de ação, onde ele consegue manter o leitor investido nas situações propostas sem nunca deixar a leitura confusa, com destaque especial sendo dado às intensas e frenéticas passagens situadas em uma plataforma petrolífera em chamas.

Reynolds usa a tensão da Guerra Fria como um pano de fundo bastante interessante para a sua história, mostrando a corrida por novas tecnologias e armamentos como um sintoma do medo do outro lado da cortina de ferro. Mesmo o recrutamento do Mestre (sob custódia após os eventos do arco The Daemons) para colaborar com um projeto do governo parece remeter a famosa operação clipe de papel, quando o governo americano recrutou cientistas nazistas para trabalharem para ele na corrida tecnológica contra o comunismo. No que tange aos aspectos de ficção científica da obra, o autor nos traz alguns conceitos instigantes e mesmo aterrorizantes, como a consciência coletiva dos Sild, criaturas do tamanho de um polegar que se locomovem através de caranguejos metálicos, sendo capazes de possuir qualquer organismo vivo que possua um cérebro onde eles possam se acoplar.

Ainda que esteja repleto de elementos clássicos, a influência da Nova Série no livro é bastante sentida. Há uma ênfase na crítica política e em uma visão mais problematizada da figura do Doutor, que parece bastante característica da primeira era Davies, enquanto há um grande foco em elementos de paradoxos temporais e paralelismos com a fantasia e os contos de fadas, que por sua vez remetem diretamente à era Moffat, que no período de publicação desse livro estava encerrando o 11º Doutor. Estes aspectos mais contemporâneos, entretanto, não descaracterizam o período do show retratado, e ainda nos sentimos lendo uma aventura típica da Era UNIT, mesmo que com influência moderna. Minha única reclamação em relação a escrita de Reynolds é que ele cria passagens mais intimistas feitas para ter grande pungência emocional, mas os seus diálogos não conseguem suportar essa carga dramática maior pretendida. O que é uma pena, pois o autor é fantástico em transmitir emoção genuína na ação e reação dos personagens aos eventos, mas não tão bom na abordagem mais intimista.

O romance transpõe com competência os personagens da TV para as páginas, dando a cada um deles um momento de brilho. Reynolds nos dá insights muito bem-vindos para o Brigadeiro Lethbridge Stewart, trabalhando o peso que o personagem carrega por ter que tomar decisões que significam a vida ou morte de seus aliados. Jo também ganha uma boa abordagem, onde recebe a chance de provar que é mais do que a assistente do Doutor. O livro também traz personagens originais carismáticos, como Eddie McCrimmon, a gerente da plataforma que serve de cenário para parte da trama; e a Rainha Vermelha, governante da raça dos Praxilion, que tenta escapar do controle dos Sild.

Apesar do afeto com que a obra trata a UNIT, o maior interesse do autor está mesmo no Mestre, e em sua relação com o Doutor. É justo dizer que o escritor está muito mais interessado no vilão do que no próprio 3º Doutor, já que no prefácio, Reynolds assume  a sua admiração pelo Mestre de Delgado, que não apenas é a sua versão favorita do personagem, mas o seu vilão favorito no geral. Isso não significa que o livro não trabalha bem o 3º Doutor, pois o Time Lord de Jon Pertwee é perfeitamente transposto para as páginas, especialmente em sua dinâmica com outros personagens, como o Brigadeiro, Jo, e o próprio Mestre, mas o livro vai muito mais fundo na figura do vilão.

O autor entende as características do Mestre de Roger Delgado, que esconde a sua loucura e gosto pelo caos atrás de modos afáveis e cavalheirescos. A ideia de que o Mestre usou o projeto do governo para enviar um sinal para as suas outras encarnações na esperança de que alguma delas o liberte da prisão é o tipo de plano egocêntrico que é muito característico do personagem, e que como ocorreu muitas vezes, explode na cara dele quando os Sild captam esse sinal. Reynolds desconstrói a figura altiva do Mestre, ao deixá-lo ferido, encurralado e até mesmo emocionalmente abalado pela maior parte da história, colocando o vilão em uma rara posição de vulnerabilidade, apenas para permitir que o Gallifreyano vire a mesa lindamente.

A parceria forçada entre o Doutor e o Mestre é deliciosa de se ler, especialmente pela desconfiança que gira em torno dessa aliança. Temos um breve vislumbre do passado da dupla em Gallifrey, onde vemos o respeito mútuo que compartilhavam, assim como as suas primeiras discordâncias éticas e morais. A ideia sugerida na série de que haveria uma natureza codependente na rivalidade que os dois Time Lords agora compartilham surge de forma bastante criativa no romance, pois por mais que o Doutor deseje que o Mestre possa se redimir um dia, ele não acredita que isso possa realmente acontecer, uma descrença que em determinado momento parece realmente inviabilizar essa redenção. Da mesma forma, é levantada a questão que em algum nível, o Doutor (Especialmente esse Doutor exilado) possa gostar do desafio que a ameaça do Mestre lhe proporciona.

A única coisa que me deixa dividido em relação à abordagem de Reynolds para o vilão é a forma com que ele tenta justificar a própria existência do antagonista. O autor não é o primeiro a sugerir que o Mestre é muito mais do que apenas outro Time Lord psicopata; a Big Finish no intrigante Master fez essa sugestão, e mesmo a Nova Série na era do 10º Doutor apontou uma origem para a loucura do Mestre. Colheita Do Tempo segue um caminho parecido, utilizado nos exemplos citados, mas mesmo que eu tenha alguns problemas com essa tentativa de explicar o vilão, não há como não elogiar a criatividade do autor em desenvolver esse conceito que cria o Mestre, misturando elementos como os paradoxos temporais tão caros para a série, com a teoria da Gestalt.

Colheita do Tempo é um livro altamente recomendável, já que engloba o melhor da era do 3º Doutor, ao entregar um Thriller de ação envolvente com toques de Guerra Fria, cheio de sequências explosivas e Sci-Fi de primeira linha. Apesar de tratar-se de um livro que celebra os 50 anos de Doctor Who, é um romance especialmente indicado para os fãs do Mestre, pois a obra é uma carta de amor a um dos mais icônicos vilões da série, e ao legado de Roger Delgado no papel.

Doctor Who: Colheita Do Tempo (Harvest Of Time) – Reino Unido, 04 de Junho de 2013
Autor: Alastair Reynolds
Publicação: BBC Books
368 Páginas

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