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Crítica | Doctor Who: Histórias de Origem

Como tudo começou...

por Luiz Santiago
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Lançado pela BBC Books em 29 de setembro de 2022, a antologia de contos Doctor Who: Histórias de Origem propõe olhar para alguns personagens icônicos da série em seu primeiro contato com algo que lhe seria característico na vida futura — muitas vezes em histórias ligadas a algum Doutor. Como o título da coletânea diz, ela apresenta aos leitores versões iniciais desses personagens, muito antes de serem aqueles que conhecemos tão bem. Ao todo são 11 contos, escritos por diferentes autores (Dave Rudden é o único que se repete, tendo escrito 3 contos). Abaixo, seguem pequenas abordagens críticas para cada um deles.

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Química

Chemistry  |  Sophie Aldred

De todas as coisas possíveis que eu pudesse imaginar para o conto de abertura dessa antologia, certamente um primeiro contato de Ace com a 13ª Doutora não era uma delas. Demorei um pouquinho para aceitar a Time Lady como uma professora de Química, vivendo mais ou menos tranquila pouco depois dos eventos de Legend of the Sea Devils, mas tudo aqui é tão divertido e tão bonitinho que essa dificuldade de aceitação acabou ficando para trás. Ace foi uma das personagens femininas que mais se transformaram e que mais sofreram em companhia do Doutor, e isso é tão verdade, que o chegou a voltar no tempo para encontrar a companion ainda bebê (no lindíssimo conto Ace of Hearts) e lhe pedir perdão, como num ato de expurgo, de terapia, de liberação de consciência. Já aqui, a Doutora encontra Ace adolescente, sendo uma excelente aluna de Química e inventando coisas que não deveria inventar (leia-se: um baita dispositivo de explosão). A narrativa de Sophie Aldred é bem fluida, divertida, e claramente mostra que quando alguém que entende bem um personagem, e escreve sobre ele, o resultado é verdadeiramente tocante. Uma pena que a memória desse encontro (seu primeiro alien, tanto a mocinha quanto o vilão!) não ter ficado para Ace. Foi um encontro muito bonito e de muito aprendizado para ela.

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Meu Pai Luta Contra Monstros

My Daddy Fights Monsters  |  Dave Rudden

É certo que a maioria das crianças sente muito quando seus pais se separam. Existem questões emocionais muito fortes que os pequenos não conseguem processar bem, o que acaba tendo uma série de consequências imediatas e posteriores na vida da família. Imaginar esse tipo de separação em uma família como a Lethbridge-Stewart já nos traz uma boa quantidade de pensamentos e possibilidade de complicações. Como a pequena Kate Stewart entendeu esse processo? Como se comportou durante a ausência do pai? E como se viraria sem ele, na ocorrência de um contato ameaçador com um alienígena? Bem, esse conto de Dave Rudden responde a todas essas perguntas. A história começa com Kate fazendo uma apresentação escolar sobre “o que o meu pai faz“. Seu texto chama a atenção da professora — que na verdade é uma espiã galáctica — porque Kate diz, casualmente, que “o papai já venceu os Axons“. O desenvolvimento do conto é bem dividido entre uma abordagem familiar e mais pessoal, falando sobre o quanto Kate e Fiona sentem falta Alistair; e uma abordagem mais externa, explorando o primeiro contato de Kate com um “monstro do espaço“; contato este que a pequena consegue guiar muitíssimo bem, guardando uma postura pacifista diante do tal monstro, chamando-o à razão e conseguindo ser deixada em paz quando o “monstro” percebe que nem ela e nem sua mãe, Fiona, tinham qualquer informação útil sobre o Doutor ou a UNIT. Um prenúncio da grande negociadora que Kate seria no futuro.

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O Motim dos Miriápodes

The Myriapod Mutiny  |  Emma Norry

Emma Norry promoveu aqui um reencontro entre antigos colegas de classe, Yaz e Ryan, em uma visita ao museu de História Natural. É uma narrativa que expõe de maneira bastante realista uma visita pedagógica a um espaço cultural. Aqui, a autora foca nos pensamentos de Ryan, que se sente escanteado pela professora e maltratado por alguns colegas. Sua dispraxia vem à tona, e Norry aproveita para explorar melhor as dificuldades que envolvem esse tipo de disfunção neurológica, desde a escrita praticamente inelegível, até questões ligadas ao foco e engajamento em assuntos teóricos. Uma grande parte da trama é dedicada a Ryan e, posteriormente, à sua pequena aventura ao lado de Yaz, quando ambos se encontram longe de seus grupos, perdidos nos corredores do museu. É então que o tal “motim do miriápodes” explode, e para resolvê-lo, surge o fanfarrão do 2º Doutor. Embora a história não seja ruim, devo dizer que a representação do 2º Doutor aqui não me convenceu de jeito nenhum. Ele é o meu favorito da Série Clássica e um dos que eu mais procurei me aprofundar nos maneirismos, caráter e análise de sua evolução como Time Lord. Por isso mesmo é que eu não consigo vê-lo agindo da forma como age aqui,na reta final da Temporada 6B, que é quando essa história se passa. Também não sou muito fã da falta de consequências para Ryan e Yaz (mais uma vez o desaparecimento da memória é ativado, e já me sinto irritado com o recurso nesse livro). Se fosse uma história onde os protagonistas não se encontrassem pessoalmente com o Doutor, o resultado talvez fosse muito melhor.

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O Último dos Dals

The Last of the Dals | Temi Oh

Esta aventura se passa algum tempo depois de Davros, ainda criança, ter sido salvo pelo 12º Doutor em The Witch’s Familiar. É uma daquelas tramas de forte impacto ético-moral, capaz de nos trazer uma grande quantidade de pensamentos e possibilidades para o personagem em questão, além de fornecer um pouco mais de informações sobre uma fase da vida dele sobre a qual pouquíssimo conhecemos. O leitor começa a considerar diversos futuros possíveis para o Universo se Davros não tivesse se encontrado com o Doutor e não tivesse, por exemplo, ficado com a chave de fenda sônica do Time Lord. Ele próprio admite que só começou a se interessar por ciência depois que viu as maravilhas que essa chave podia fazer. E aqui a gente tem piscadelas de como uma personalidade como a de Davros se desenvolveu ao longo dos anos. Como é possível encontrar traços de um terrível futuro assassino do Universo em uma criança inocente? Esse tipo de análise é feita em nossa realidade toda vez que procuramos entender a psique de assassinos, a fim de identificar o mesmo padrão em outras pessoas, remediando possíveis tragédias futuras. Este conto é um exercício de análise nesse nível. Um campo fértil de questões comportamentais, com uma pitada de elemento divinatório. Primeiro vemos Davros fazendo amizade com um menino Dal. Em seguida, o vemos numa emocionante cena, tendo uma visão de seu futuro e rejeitando todo o horror que foi capaz de presenciar na visão. Confesso que me emocionei nessa parte. O dilema moral que Temi Oh coloca em sua narrativa é imenso e termina com uma nota importante sobre o fato de que nenhum futuro está decidido. Tendências, possibilidades, forças externas e probabilidades existem aos montes, às vezes focando muito mais em um tipo de pessoa do que outras. Mas ao fim e ao cabo, no sentido cru e puro de uma tomada de ação, as pessoas são mesmo aquilo que elas escolheram ser.

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Murmuração

Murmuration | Mark Griffiths

Esta é outra narrativa do livro que faz um futuro companion se encontrar com um Doutor e terminar com a memória apagada. Será que o editor da antologia não conversou com seus escritores para orientar a resolução dos contos? Porque um recurso assim aparecer uma vez em um volume, tudo bem. Agora ser a tônica das tramas com os companheiros… aí já é problemático mesmo. Assim como na história de Ace, vemos aqui uma companheira do Time Lord ainda em fase escolar, nesse caso, com 14 anos. Sarah Jane encontra-se com o 4º Doutor (que em sua linha do tempo, está entre The Deadly Assassin e The Face of Evil) e ambos resolvem um caso de uma murmuração de aves que estavam sendo usadas por uma raça alienígena maligna. É uma trama com um peso interessante por se tratar desses dois personagens e por mostrar um pouquinho do bullying que um grupo de garotas cometia contra Sarah e todas as pessoas que, minimamente, fugiam da “norma social aceitável”, em qualquer instância possível. Mas Mark Griffiths consegue apenas o básico com essas aves possuídas e com uma Sarah Jane adolescente, que tem sua memória apagada ao fim de tudo. Pelo menos o 4º Doutor está representado corretamente, nesse momento de sua vida.

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O Grande Sono

The Big Sleep | Dave Rudden

Em O Grande Sono, Dave Rudden (em seu segundo conto na antologia) tenta criar uma “história policial” que se passa alguns dias antes de os Silurianos entrarem em estado de hibernação, para se protegerem do meteoro que exterminaria grande parte da vida na Terra. Evidente que a estrela do enredo é Madame Vastra, que está ao lado de Jenny, lembrando-se desses momentos de seu passado. Eu tive dificuldade de gostar de todo o desenvolvimento do mistério e do resultado da investigação. E o curioso é que a proposta é boa: se passa num passado distante da Terra e mostra os primeiros anos da carreira de Vastra! Não tem como não gostar da proposta geral. Porém, à medida que os assassinatos acontecem e outras coisas estranhas ligadas à hibernação assustam os Silurianos, o texto se perde. Muita coisa é condensada e, linhas depois, apresentada como se fosse uma ideia amadurecida, o que torna algumas passagens muito estranhas. Outras passagens são desnecessariamente alongadas e repetitivas, como as do Juiz-mentor de Vastra falando pelos cotovelos. Claro que nesse cenário e com essa atuação da personagem, vê-se o porquê esta é uma “história de origem“, mas o verdadeiro elemento dessa origem (o que tornaria Vastra uma detetive, uma espécie de Dylan Dog misturada com Martin Mystère do Universo Who) não sai da superfície.

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Doutora Jones

Doctor Jones | Faridah Àbíké-Íyímídé

Que conto sensacional! Para começar, ele é uma experiência nova para mim, pois nunca li nada escrito pela britânica-nigeriana Faridah Àbíké-Íyímídé. A sensibilidade da autora para tratar temas ligados ao amadurecimento de uma personagem, e, nesse caso, também a viagens no tempo, me impressionou. De quebra, ela ainda conseguiu fazer com que a repetição do recurso de “memória apagada do companion” nesse livro se tornasse aceitável pela primeira vez, porque o princípio dessas lembranças jogadas fora é orgânico; foi retirado de dentro da obra e faz total sentido naquilo que a história conta: não aparece apenas como algo forçado, imposto, “ruim, mas necessário“. Martha ainda não decidiu se vai entrar para alguma faculdade ou sair do Ensino Médio e ir direto trabalhar. É nesse ponto de sua vida que esta aventura se passa, e tem como início um corte no dedo de sua mãe e a necessidade de a jovem sair para comprar um kit de primeiros socorros. Os eventos que a farão encontrar-se com o 9º Doutor, ainda nas primeiras aventuras de sua regeneração (a trama se passa antes de Rose); sua viagem no tempo até Salem e o impulso mental que logo depois a fará optar por medicina no curso universitário são elementos muito bem explorados no texto. Até a sensação de déjà-vu está bem colocada aqui, dialogando com o leitor. Ao lado da narrativa sobre Davros, esta é a minha favorita do livro. Um capítulo de interessante e necessária amplitude do passado de Martha Jones, uma das melhores e mais subestimadas companheiras da série.

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A Garota que Rasgou o Universo

The Girl Who Tore Through the Universe | Nikita Gill

Bom… este é um conto… fofo. Não é uma história da qual o leitor sairá transformado, mas com certeza traz cenas de imensa fofura, e não só para Amy, que é a protagonista. A temática trabalhada na série sobre o “homem maltrapilho” tem aqui um excelente capítulo de explicação, falando-nos um pouco sobre o que aconteceu com Amy após os eventos de The Eleventh Hour. O trauma que o Doutor deixou nessa menina não foi pequeno. Imagine crescer com os outros achando que você está louco, que já é grandinho demais para ter um amigo imaginário… E mesmo assim, Amy persistiu. Eu achei quase lírica a maneira como ela mergulha nos estudos de Física, e como, meio que por acaso, acaba entrando em uma aventura que a mudaria para sempre. Uma aventura ao lado de um colega de escola que é apaixonado por ela. Rory Williams. O adolescente Rory é ainda mais precioso que o Rory adulto. Claramente caidinho de amores por Amy, ele embarca nas mais malucas aventuras só para estar ao lado dela. Todavia, eu achei meio forçada a ideia com a caixa deixada por Newton embaixo da macieira. E também o encontro de Amy com a mãe, somado à solução simples para toda a situação. Enquanto o enredo tratava das memórias de Amy em relação ao Doutor ou da relação dela com Rory, o conto ia bem. Mas quando as “impossibilidades interessantes” saem da caixinha, parece que Nikita Gill precisa de muito mais páginas para transformar suas ideias em algo vivo, com o qual o leitor possa se engajar. O ciclo se fecha com uma promessa, com um quentinho no coração, especialmente porque a gente sabe o que aconteceu depois. Pena que a “grande aventura” do conto não nos traga esse mesmo sentimento.

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Clara Oswald e a Floresta Encantada

Clara Oswald and the Enchanted Forest | Jasbinder Bilan

Se tem uma coisa que Jassbinder Bilan conseguiu criar aqui de maneira exemplar foi a personalidade de Clara Oswald. Ambientado no Halloween de 2001, este conto mostra uma Clara adolescente, fazendo birra porque a mãe não quis deixá-la passar a noite na casa de uma amiga, onde a Festa das Bruxas aconteceria. Vestida de vampira, ela sai para a festa, tendo que voltar cedo para casa. Antes, porém, comete um ato ridículo e estúpido que me lembrou, em tudo, a cena em que ela joga as chaves da TARDIS num vulcão em atividade, em Dark Water. Aqui, enraivecida com a mãe, ela joga a “folha de árvore da família” pela janela, perdendo a folha no vento. Sim, a mesma folha responsável por unir os seus pais e que seria essencial no desfecho de The Rings of Akhaten. Minha vontade foi entrar no conto e dar umas chineladas em Clara. Mas convenhamos, é uma atitude que podemos identificar como sendo reconhecível da personagem, vide a citada situação com as chaves da TARDIS. Mas o lado bonitinho, animado, magnético e aventureiro da personagem também é mostrado aqui. Tirando o desenvolvimento da personagem, porém, pouca coisa no conto me chamou a atenção. As árvores alienígenas não são interessantes; a presença do 11º Doutor é caótica demais para esse tipo de história; e o cansativo e irritante modelo de apagar a memória da companion volta como resolução. A brincadeira com os contos de fada se destaca na trama, porque serve como elemento de maturidade para Clara (as cenas dela com a loba são fantásticas), garantindo parágrafos de grande carga poética. Ao menos nesse aspecto, de delinear uma personagem, a aventura consegue bons resultados. Quanto ao resto… nem tanto.

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Abraços de Veludo

Velvet Hugs | Katy Manning

Escrito por Katy Manning, este conto nos faz acompanhar Jo Grant desde a sua saída do colégio até a entrada da UNIT. Seguimos com o seu treinamento e, como coroação, a sua indicação para trabalhar ao lado do 3º Doutor, em Terror of the Autons. É uma ótima história de formação, narrada em retrospecto por uma Jo na casa dos 80 anos, no aniversário de 5 anos de seu segundo bisneto. Ao lado do esposo Cliff Jones, a ex companion do Doutor passa a vida em revista. E Katy Manning, que escreveu este conto aos 76 anos de idade, consegue colocar no texto toda a força que esse tipo de memória tem para uma pessoa. Assim como Sophie Aldred escrevendo sobre Ace, em Química, Manning soube exatamente como chamar a nossa atenção para uma aventura com Jo, destacando tudo aquilo que ela tem de mais interessante. Vemos as suas falhas na escola, os momentos acalentadores na casa do tio, a decepção ao ser colocada em uma escola de hábitos rígidos e, uma grande surpresa, o seu encontro com Iris Wildthyme. Não há muito o que falar sobre este encontro porque ele é bem reticente e coberto de mistérios. Afinal, de onde o tio de Jo conhecia Iris? Seria uma piscadela metalinguística da autora? Nada disso nos é explicado. Mas temos aqui, de fato, uma excelente jornada de vida, uma trama nostálgica sobre bons momentos do passado. E o abraço para o mistério da “última  viagem” que aguarda a todos nós.

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Mal Humorado

Tempered | Dave Rudden

Ah, que preguiça! Que sono! Que chatice! Logo no fechamento do livro, temos que aturar outro conto de Dave Rudden, e, dessa vez, um conto ruim. Pior ainda: um conto ruim com Missy! É preciso perder muito a mão para escrever uma coisa ruim protagonizada por Missy, não é mesmo? Mas é exatamente isso que temos aqui. Uma história absurdamente confusa, aparentemente uma vingança do Mestre. Há também a ligação (em flashbacks) com o momento em que ele, em Gallifrey, olhou para o vórtice e parte de sua mente simplesmente… mudou. O ruim é que esse lado interessante do texto é intercalado com uma mortandade deslocada cujo propósito sequer é trabalhado aqui a contento. Que modo vergonhoso de se terminar uma coletânea tão boa!

Doctor Who: Histórias de Origem (Origin Stories – anthology) — Reino Unido, 29 de setembro de 2022
Editora original: BBC Books
321 páginas

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