Home Diversos Crítica | Doctor Who: Império De Vidro, de Andy Lane

Crítica | Doctor Who: Império De Vidro, de Andy Lane

Conferência caótica em Veneza.

por Rafael Lima
380 views

Equipe: 1º Doutor, Vicki, Steven
Espaço: Veneza, Londres, Lua Terrestre
Tempo: 1609

Durante a maior parte da era do Primeiro Doutor em Doctor Who, as histórias de ficção científica e as situadas no passado foram mantidas separadas, salvo poucas exceções. Da mesma forma, o mandato de William Hartnell naturalmente estava apenas começando a construir a mitologia do programa, de modo que o show ainda não tinha uma galeria de vilões e nem ao menos os Time Lords haviam sido revelados como o povo do Doutor. É impressionante, portanto, que o escritor Andy Lane, em sua contribuição para o selo Missing Adventures, entregue um pseudo-histórica (ou seja, uma trama sci-fi situada no passado), que mergulha em diversos elementos da mitologia da série, mas que ainda se encaixa nas aventuras do 1º Doutor.

Na trama, situada entre a 2ª e a 3ª temporada da Série Clássica (Para o 1º Doutor, imediatamente após The Three Doctors), o Doutor é devolvido à sua TARDIS após passar horas desaparecido, lembrando apenas de ter tido um sonho estranho com um palhaço e um almofadinha. O Doutor traz com ele um convite, que ao ser conectado ao painel da TARDIS, leva a nave para a Veneza de 1609. Enquanto tentam descobrir o significado do convite, o Doutor, Vicki e Steven conhecem o famoso Galileu Galilei, que recentemente escapou de um estranho atentado contra a sua vida, ao mesmo tempo em que o misterioso Irving Braxiatel organiza uma convenção galáctica de controle de armas nos arredores da cidade, que conta com a presença de diversas espécies alienígenas. 

Andy Lane inicialmente estrutura Império De Vidro em dois eixos narrativos. O primeiro adota aspectos cômicos típicos dos arcos históricos da era do 1º Doutor, ao trabalhar com uma trama de troca de identidade, onde o Doutor é confundido com o Cardeal Roberto Belarmino, que está na cidade para avaliar o novo invento de Galileu (o telescópio), e o próprio cardeal é confundido com o Doutor pelos homens de Braxiatel e levado para uma ilha repleta de alienígenas para presidir a convenção. Essa confusão de identidade gera momentos hilários, mas também críticos, especialmente no caso do Cardeal Belarmino (que acredita ter morrido e ido ao paraíso) que ao basear-se completamente na Bíblia, aprova o uso de armas de destruição em massa de diferentes tipos, de modo a deixar até mesmo Sontarans e Ice Warriors chocados.

O segundo eixo narrativo gira em torno do mistério que cerca as tentativas de sabotagem à conferência de Braxiatel, e por que Galileu é um impedimento a esses planos de sabotagem. Mas mesmo este mistério não é levado muito a sério, já que enquanto alguns elementos da conspiração de sabotagem são intencionais, outros são frutos de confusão e troca de identidade mesmo. Felizmente, o autor tem plena consciência da atmosfera que quer dar à sua história, não permitindo que os dois eixos com que trabalha sabotem um ao outro, mesmo que o humorístico seja o dominante. Lane também merece créditos pela construção de mundo que realiza no livro, ao fazer com que o leitor se sinta na Veneza do Século XVII. A cidade é retratada como um organismo vivo, com a obra explorando os diferentes aspectos culturais e sociais da Veneza da época, desde a vida boêmia do local, passando por sua posição como um dos principais pontos de comércio da Europa no período, até a presença da Igreja Católica em uma comunidade que, poucos anos antes, havia sido excomungada.

Um dos guias do leitor pela Veneza de Império De Vidro é Galileu Galilei, que é retratado como um homem genial, mas teimoso e irascível, que vive fugindo de seu locatário, e não raramente se mete bêbado em brigas de bar, em uma visão divertida da conhecida figura histórica. A parceria entre o Doutor e Galileu é incrível, e o astrônomo chega a roubar a cena dos Companions, sendo o personagem mais carismático do livro. Outro personagem que ganha destaque é Irving Braxiatel, uma das principais criações do Universo Expandido. Descrito como sendo da mesma espécie do Doutor (o termo Time Lord nunca é usado), Braxiatel é tão inteligente quanto o próprio protagonista (talvez mais), ainda que sem a mesma criatividade e com mais paciência para jogos políticos. Aqueles familiarizados com as histórias de Sherlock Holmes vão reconhecer em Braxiatel fortes semelhanças com Mycroft Holmes, e não por coincidência, o livro provoca constantemente que Braxiatel e o Doutor possam ser irmãos.

O time da TARDIS é explorado de forma consistente pelo autor, especialmente os Companions, que ganham maior aprofundamento no que diz respeito aos traumas que enfrentaram antes de serem resgatados pela TARDIS. O 1º Doutor é perfeitamente transposto para as páginas, com a prosa de Andy Lane conseguindo reproduzir os maneirismos e a persona ora rabugenta ora travessa do Time Lord de Hartnell. Ainda que o retrato de Vicki soe um pouco genérico em alguns momentos, o autor lança um olhar breve, mas aprofundado sobre o papel da garota como “neta substituta” do Doutor, em um momento sutil, mas forte de amadurecimento da jovem órfã. Vicki, entretanto, ganha uma subtrama um pouco chata envolvendo o interesse que o alienígena Albrelian (um homem-pássaro que fala como o Yoda de Star Wars) tem na menina, ainda que tal subtrama sirva de porta de entrada para uma das principais reviravoltas da narrativa.

Embora se envolva muito menos na trama central, é Steven o companheiro que mais ganha espaço neste romance. Ainda que grande parte da Veneza que Andy Lane nos apresente seja vista através dos olhos de Galileu, é Steven que nos dá a perspectiva estrangeira, ao vagar por essa cidade que, para ele, é completamente estranha e fascinante. Império De Vidro traz o astronauta como alguém que ainda está se acostumando à liberdade após os seus anos de exílio em Mechanus, com as multidões da cidade sendo igualmente atraentes e assustadoras para o rapaz. O Doutor e Vicki guiam a narrativa da obra, mas é Steven que guia a atmosfera. É também através do Companion, que somos apresentados a mais duas figuras históricas do livro, os dramaturgos William Shakespeare e Christopher Marlowe, que surgem nos inusitados papéis de espiões da coroa britânica, o que é especialmente estranho no caso de Marlowe, já que ele já estava morto no ano em que o livro se passa (o que é explicado pela velha morte forjada).

Entretanto, apesar de desenvolver muito bem os seus personagens, percebe-se que Lane joga várias ideias no livro que tornam a narrativa inchada. A trama envolvendo Shakespeare e Marlowe é um exemplo, pois apesar de possuir sim pontos muito interessantes e divertidos, parece um pouco atravessada, gerando inclusive um clímax esticado em demasia. Dito isso, ainda é impressionante como o autor consegue equilibrar um número relativamente grande de linhas narrativas mantendo a coerência total e com qualidade. Mas existe sim em alguns momentos uma dificuldade na hora de amarrar essas linhas, como por exemplo, no motivo que faz com que Galileu seja uma preocupação tanto para Braxiatel quanto para aqueles que querem sabotar a conferência, em uma justificativa que ainda que faça sentido, deve soar fraca para o leitor.

Apesar dessas falhas, é curioso observar como o autor se utiliza da mitologia da série, sem com isso se desviar muito da era do show que o romance retrata. Sim, Lane constrói a obra em cima de linhas descartáveis ditas muito tempo após o mandato de Hartnell, como a Convenção do Armageddon, citada em Revenge of The Cyberman, e a coleção Braxiatel, mencionada em City Of Death, e que ganha aqui uma origem, mas em nenhum momento essas referências alienam o leitor casual, ou dão a impressão que o 1º Doutor está vivendo uma aventura fora de sua era. Mesmo as referências ao arco The Three Doctors, que serve de ponto de partida da história são sutis o bastante para serem mais piscadelas ao fã de longa data do que uma obrigação para se compreender a trama, o que acho um exercício válido e desafiador por parte do autor. 

Com Império De Vidro, Andy Lane entrega uma história divertida e criativa, que mesmo com todos os seus elementos ácidos e farsescos, consegue manter o leitor imerso em sua narrativa, especialmente pela forma como constrói os seus personagens, e como cria uma ambientação fascinante da Veneza do Século XVII. Ainda que o romance soe inchado em alguns pontos, o saldo final da obra ainda é bastante positivo, e só o fato de podermos ler sobre Galileu Galilei saindo no braço com um Sontaran por uma discordância astronômica já faz a leitura valer a pena.

Doctor Who: Império De Vidro (The Empire Of Glass) – Reino Unido. 16 de Novembro de 1995.
Virgin Missing Adventures #16
Autor: Andy Lane
Publicação Original: Virgin Books
259 Páginas

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais