Equipe: 6º Doutor, Peri
Espaço: Esselven Menor
Tempo: Século 31, Século 36
Christopher Bulis é um autor consistente em suas qualidades e defeitos como autor de Doctor Who. Já tendo escrito vários livros para a série, Bulis espelha nas páginas o espírito da era do show sobre a qual está escrevendo, trazendo não só as virtudes, mas também os vícios que esses períodos possuíam. No caso da Era do 6º Doutor, Bulis reproduz tanto a energia distópica da Era Colin Baker quanto as situações de vulnerabilidade (muitas vezes sexistas) em que a Companion Peri Brown era posta. Por outro lado, é interessante como Bulis, ainda que utilize esses elementos, os subverte de forma irônica, mostrando que ele está consciente dessas características desse período da série, algo que ele já havia feito em Estado De Mudança e volta a fazer em O Palácio Do Sol Vermelho.
Na trama, em busca de tranquilidade, o 6º Doutor e Peri chegam ao mundo-jardim de Esselven Menor, onde podem fazer um piquenique. Mas o jardim é menos pacífico do que a dupla imagina, e eles logo se separam depois que a jovem fica presa em um buraco, e o Time Lord é capturado por robôs-jardineiros que patrulham o local. Enquanto isso, um perigoso conquistador espacial, acompanhado do inescrupuloso repórter Dexel Dynes, caça a família real de um planeta que conquistou para consolidar o seu poder, e acredita que eles estão refugiados no mundo-Jardim. Com uma invasão iminente se aproximando, o Doutor e Peri devem escapar da situação em que se encontram, ao mesmo tempo, em que Oralissa, uma princesa forçada a um casamento arranjado, deve tomar a decisão de sua vida.
Quem já leu um livro de Christopher Bulis vai reconhecer aqui vários dos temas que o autor trabalha em suas obras, como o interesse na guerra de classes, e a reflexão sobre o nível de consciência que as I.A. podem alcançar. Ele joga na sua zona de conforto, ainda que se perceba evolução na forma como essas discussões são postas de maneira mais coesa do que em obras anteriores. O livro se divide em quatro núcleos, o primeiro com o Doutor tentando encontrar os mestres do planeta com a ajuda de um robô que se tornou senciente, o segundo com Peri tentando fugir de um campo de escravos, o terceiro focado nas aflições da Princesa, e por fim, a cobertura de Dexel Dynes da comitiva do tirano Glavis Judd. Bulis articula bem esses núcleos, costurando-os organicamente e fazendo uma boa construção de mundo com Esselven Menor, com suas regiões produtivas e improdutivas bem demarcadas, deixando claro não só a geografia, mas a mecânica social do planeta.
O romance também faz uma analisa do significado da consciência através do Robô Verde-8, um maquina que tendo descoberto recentemente o livre-arbítrio, fica fascinado com a possibilidade de pensar para além daquilo que foi programado para pensar, mas que também está aprendendo sobre a angústia das dúvidas que vem com as escolhas. Há bons paralelos entre essa tomada de consciência mais direta do robô e os conflitos vividos pela Princesa, que passa a questionar não só as suas obrigações de casamento, mas a própria alienação da aristocracia. No lado dos vilões, O Palácio Do Sol Vermelho faz uma crítica acida sobre a mídia, que muitas vezes transforma guerras em espetáculo. A forma como a obra constrói Glavis Judd também é eficiente em termos de formato, por Bulis articular os pensamentos do vilão com o perfil montado pelo repórter. O mérito do autor é fazer de Judd alguém cheio de delírios de grandeza e de mérito, como tantos outros tiranos históricos, mas sem caricaturas exageradas, erro fácil de criar quando se trabalha com esse tipo de personagem.
Outro fator intrigante é a forma como Bulis trabalha a Companion Peri Brown. O universo expandido muitas vezes pega Companions que não tiveram o mais interessante dos desenvolvimentos na TV, e as enriquecem trazendo elementos que eram apenas sugeridos no programa. No caso de Peri, parece haver um foco no humor, um certo reconhecimento de que Peri se sente meio azarada na TARDIS, sempre em situações de extremo perigo, quando o que a jovem queria era só conhecer o universo. Claro, o autor reconhece que Peri foi uma Companion tratada pela série de forma desnecessariamente objetificada, e verdade seja dita, não está tentando corrigir isso, já que a moça termina a trama com mais pele à mostra do que começa. Por outro lado, a obra lida com esse aspecto dessa era de maneira espirituosa, com a Companion cada vez mais frustrada pela inacreditável maré de azar e pela série de pequenas indignidades que precisa enfrentar, quanto tudo o que ela quer é um piquenique tranquilo em um planeta alienígena inofensivo.
O clímax dessa frustração se dá em uma sequência onde um garoto de doze anos, com quem ela fugiu do campo de escravos, se encanta por ela, e tenta forçá-la a se casar com ele — e mais: disputá-lo em um combate mortal com outra garota. Poderíamos acusar o autor de basicamente praticar misoginia recreativa aqui, e talvez ele fique perto dessa linha, quando o garoto comenta que pode Bater nela para fazê-la obedecer depois que ela se tornar esposa dele. Entretanto, há uma certa ludicidade nessa construção, que permite que o cenário não fique pesado demais, e que reconhece o contexto em que os personagens estão inseridos para não validar esse comportamento, especialmente quanto Peri finalmente explode de raiva e dá uma surra no garoto, como se finalmente tivesse a chance de reagir as diversas situações objetificantes que foi posta em seu tempo no Show. Pode ser uma forma hipócrita de abordar a questão, mas não deixa de ser autoconsciente, e uma tentativa, ainda que meio falha, de apontar o problema com Peri fora de um viés moralista, e no fim, e não posso dizer que não me diverti lendo a ira justa de Peri.
Como outros romances de Christopher Bulis para Doctor Who, O Palácio Do Sol Vermelho captura bem o período do programa que se propõe a retratar, com uma história ágil e divertida. Bulis até reconhece alguns dos excessos da Era do 6º Doutor, apontando-os, mas sabendo se divertir com eles. É um livro com personagens carismáticos e bem desenvolvidos, e que possui ideias inteligentes e bem-organizadas pelo autor, mesmo que, dentro de sua bibliografia, ele não esteja se desafiando muito. Em resumo, não é um livro que vá figurar entre os melhores da série ou algo do tipo, mas é uma boa leitura, que propõe algumas reflexões interessantes e que põe um sorriso no rosto do leitor.
Doctor Who: O Palácio Do Sol Vermelho (Palace Of The Red Sun) – Reino Unido, 4 de Março de 2002
Autor: Christopher Bulis
BBC Past Doctor Adventures #50
Publicação: BBC Books
285 Páginas