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Crítica | Doctor Who: Quem Matou Kennedy, de David Bishop

por Rafael Lima
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Era UNIT- Ano 1 a Ano 5
Espaço: Reino Unido/Dallas
Tempo: 1969 a 1971, 22 de Novembro de 1963, 1996.

A era do Terceiro Doutor ficou conhecida por aproximar o público das aventuras do Time Lord, ao situar grande parte das tramas na Terra contemporânea. A cada arco, o Terceiro Doutor enfrentava diferentes ameaças em um mundo contemporâneo e, mesmo assim, a população civil do show continuava a se surpreender com a existência de alienígenas a cada vez que um novo perigo espacial surgia. A explicação foi atribuída à “Incrível capacidade de auto-engano do ser humano”, o que, de certa forma, funciona. Mas Quem Matou Kennedy, de David Bishop, sugere que forças secretas trabalhavam para manter alguns fatos ocultos, encobrindo rastros, desacreditando e ameaçando quem tentava revelar a verdade ao mundo.

Quem Matou Kennedy é protagonizado por James Stevens, um jornalista que após checar sem muito interesse uma dica sobre um suposto homem com sangue alienígena que deu entrada no hospital (o Terceiro Doutor recém regenerado), tem o seu primeiro contato com a UNIT e o Brigadeiro Lethbridge Stewart. A partir do momento em que James começa a receber pistas de um informante desconhecido que alega que a UNIT é mais do que parece, o romance passa a se construir como um competente thriller de conspiração, pois enquanto Stevens passa a investigar as atividades da UNIT, e consequentemente do Doutor, forças misteriosas passam a ameaçá-lo para que ele pare a investigação e se mantenha calado, tomando medidas cada vez mais violentas para isso.

Narrado em primeira pessoa, o romance é apresentado como um “trabalho de não ficção”, com Bishop dividindo os créditos com “seu amigo” James e alegando, no prefácio, que apenas compilou o material do colega após o seu desaparecimento. Ao tratar o livro como um trabalho jornalístico, o autor joga com a forma narrativa, às vezes adotando o formato epistolar com cartas e artigos de jornal, o que reforça o tom documental da obra. Quem assistiu a Série estará um passo à frente de James, já que conhecemos algumas das respostas que ele busca. Tal elemento poderia ter se voltado contra a obra, mas mesmo que inicialmente saibamos mais que o jornalista, o escritor consegue nos fazer partilhar do olhar de Stevens de modo que realmente o Doutor e a UNIT pareçam assustadores por seu envolvimento em tantos desastres.

Começando em Spearhead From Space e se estendendo até depois dos acontecimentos de Day Of the Daleks, o romance retrata como o cidadão comum e a imprensa reagiram aos eventos dos arcos situados neste período (exceto Colony in Space) e como as autoridades encobriram tais acontecimentos. A obra não se limita às aventuras da Era UNIT, já que James Stevens passa a investigar as aparições do Doutor nos anos 40, 50, e 60, o que leva o jornalista a desbravar os bastidores de incidentes como o desaparecimento de Susan, Ian, e Barbara em An Unearthly Child, assim como os eventos ocorridos em The Curse of Fenric, Delta and The Bannermen, Remembrance of The Daleks, The War Machines, The Faceless Ones, The Web of Fear e The Invasion.

O Protagonista James Stevens é apresentado como um homem cheio de falhas, um jornalista que declara “Não deixar a verdade ficar no caminho de uma história”, e que trata a esposa com total indiferença. Mas o autor nos faz ter empatia por James, ao trabalhar a sua humanidade e suas falhas de caráter de forma cuidadosa, especialmente após ele chegar ao fundo do poço na metade da obra, tendo que reavaliar sua relação com as pessoas e com a sua profissão. O Soldado Francis Cleary é outro personagem importante, cuja história é contada através de cartas enviadas para a mãe. O seu plot corre em paralelo com a trama principal durante a maior parte do livro, trazendo o ponto de vista de um soldado da UNIT, que tem que conviver com a pressão enfrentada por esses homens, que devem batalhar contra ameaças sobre as quais nada sabem, com pouquíssimas informações compartilhadas por seus superiores, e que no caso de Cleary, lentamente começa a sucumbir diante de tal pressão.

A maior parte dos membros da “Família UNIT” fazem pequenas pontas (com Liz Shaw tendo uma participação um pouco maior). Também reencontramos vários personagens não recorrentes da série, através de entrevistas realizadas pelo protagonista, como Samantha Briggs de The Faceless Ones, Isobel Watkins de The Invasion e Greg Sutton de Inferno, onde descobrimos o que houve com eles após seu encontro com o Doutor, e como tal encontro afetou as suas vidas. Embora se sinta a presença do Terceiro Doutor e do Brigadeiro o tempo todo, suas participações são pequenas, ocorrendo em momentos chave, assim como uma rápida ponta do 7º Doutor. O Mestre tem um importante papel nos bastidores, em uma das leituras mais cruéis da versão de Roger Delgado. Por fim, o autor resgata a sinistra organização C19, citada somente uma vez na série, mas que desempenhou um papel recorrente no universo expandido, como nos romances As Escalas da Injustiça e Negócios Incomuns.

Mas a personagem oriunda da série a ganhar maior importância surpreendentemente é Dodo Chaplet, ex companion do 1º Doutor, que após deixar a TARDIS, teve uma trajetória trágica, para dizer o mínimo. Quando James conhece Dodo, ela é uma sem teto com síndrome do pânico, que não tem lembranças das viagens com o Doutor, excetuando por pesadelos envolvendo caubóis e brinquedos vivos. Tendo sofrido sequelas do controle mental do supercomputador WOTAN em The War Machines, Dodo passou a maior parte do tempo internada em sanatórios, onde chegou a escapar de um ataque sexual, matando o seu agressor. Tendo perdido a memória de sua internação mais recente, ela quer recuperar o seu passado de vez, e se une a Stevens na busca pela verdade.

Dar um papel proeminente a uma companion tão mal trabalhada é uma ideia interessante, pois o autor tem qui a chance de praticamente reinventar a personagem. Mas logo percebemos que Dodo está na trama só para servir como interesse amoroso de Stevens, e que toda a desgraça que ocorreu em sua vida após deixar o Primeiro Doutor está ali meramente pelo valor de choque, e não para a construção da personagem. O romance entre James e Dodo ainda é mal construído, o que se torna um grande problema no terço final do livro, já que a relação ganha peso na trama, mas não toca o leitor, talvez por que Dodo não é trabalhada como uma personagem por si só.

Infelizmente, a forma como Bishop trabalha Dodo e sua relação com James não é o único problema a aparecer enquanto o romance se encaminha para o fim. O autor que vinha construindo a trama em um ótimo crescendo, perde totalmente o ritmo da narrativa, e começa a atropelar os acontecimentos. E é claro, há o presidente. Quem está lendo essa crítica já deve ter notado que eu não toquei no nome do 35º presidente americano, excetuando pra citar o título. E a razão é simples, não é importante. Apesar de James apresentar um interesse quase obsessivo pelo caso JFK, tal interesse parece servir somente como paralelo para o seu gosto por conspirações e verdades ocultas. Mas o autor apresenta de forma tardia um 3º ato envolvendo uma viagem no tempo até a fatídica tarde de novembro de 63 em Dallas, quando uma bala matou Kennedy, desviando-se totalmente da atmosfera construída até ali. Percebe-se neste clímax, que tal como Stevens, David Bishop parece ter grande fascínio por este crime histórico. Mas tal clímax nada tem a ver com o que havia sido apresentado até então, simplesmente não se comunicando com o resto da obra, deixando o leitor com a sensação de que o autor nos apresenta a conclusão de outra história, não daquela que estávamos acompanhando até aquele momento.

Quem Matou Kennedy é um livro que traz um olhar curioso para a Era UNIT, mostrando histórias clássicas da série vistas pelos olhos de gente comum. O autor expõe a falibilidade do Time Lord e da UNIT, ao mostrar vítimas colaterais de suas batalhas, que muitas vezes não são percebidas por eles, como Dodo e Francis Cleary. Apesar de dar alguns contornos sombrios ao Time Lord e ao Brigadeiro, a história expõe a natureza nobre e essencialmente boa da dupla, que enfrenta situações impossíveis nas sombras para que gente normal viva em segurança, mesmo que inseridos em um sistema que nem sempre tem o interesse dessas pessoas como prioridade. A obra, através dos conflitos do protagonista, também trabalha questões pertinentes á respeito da busca pela verdade em uma perspectiva quase epistemológica, que claramente pode se referir ao jornalismo, mas também a qualquer ação que busque a tal verdade, pois afinal, quantas vezes não estamos buscando a verdade de fato, e sim o que acreditamos ser a verdade? Além disso, temos mais uma vez a problematização da verdade não só como conceito, mas como oposição ao segredo, sugerindo que ás vezes a verdade é terrível e inacreditável demais para ser contada.

Há muita coisa para se gostar neste trabalho de David Bishop. Tem um início promissor, um desenvolvimento instigante, um clima de conspiração quase perturbador, e um protagonista crível e cheio de detalhes de personalidade em uma jornada de redenção e tragédia. Uma pena que o terço final tem uma queda de qualidade desastrosa, que arranha o ótimo trabalho que havia sido feito até ali. Mas ainda é um livro que eu recomendo a leitura, mas que seria muito melhor se Kennedy e seu assassino tivessem sido esquecidos. Esse decididamente não é um livro sobre o assassinato do presidente. Pena que o autor não percebeu isso.

Doctor Who: Quem Matou Kennedy (Who Killed Kennedy) — Reino Unido, 18 de Abril de 1996
Autor: David Bishop
Publicação: Virgin Books
281 Páginas.

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