Home TVEpisódio Crítica | Doctor Who – Série Clássica: The Two Doctors (Arco #140)

Crítica | Doctor Who – Série Clássica: The Two Doctors (Arco #140)

por Luiz Santiago
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THE-TWO-DOCTORS-PLANO-CRITICO-DOCTOR-WHO

estrelas 4,5

Equipe: 6º Doutor, Peri / 2º Doutor, Jamie
Espaço: Space Station Camera / Sevilha, Espanha
Tempo: c. 1985

Desde o sucesso de The Five Doctors, o produtor John Nathan-Turner imaginava fazer uma outra história multi-Doctor, e queria fazer isso com o 6º Doutor. Aliado a esse desejo, o produtor tinha a intenção de aproveitar o recente sucesso de Doctor Who nos Estados Unidos e ambientar alguma história da série na Terra do Tio Sam. A série não ia bem nos bastidores da BBC (a bomba explodiria no final desta 22ª Temporada), mas o showrunner estava disposto a tentar de tudo. As negociações para gravar nos EUA foram inicialmente bastante positivas. A história se passava em New Orleans e aparentemente o orçamento para a produção estava garantido, isso até o começo de 1984, quando os planos começaram a ruir. Por um breve momento, cogitou-se transferir as locações para Veneza, mas o custo ainda alto e a quantidade de turistas no local desencorajaram a tentativa. Então veio a ideia de filmar na Espanha, e a cidade de Sevilha foi escolhida como local para esta aventura com duas encarnações do Doutor.

Muita gente confunde a localização desse arco na linha do tempo do 2º Doutor e outro grupo de pessoas, talvez por não terem conferido as obras e só terem lido resumos ou apostarem à distância no que poderia ter acontecido, interpretam mal as duas referências do Universo Expandido que nos trazem até aqui. No bloco seguinte, darei as explicações necessárias para que vocês entendam a [quase] bagunça.
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Entendendo os Paradoxos

No final de The War Games, mais especificamente, no último episódio, existem três grandes brechas onde muita coisa pode ter acontecido fora da tela. São elipses de tempo dentro da narrativa e é a partir delas que os autores do Universo Expandido criaram a ideia de Temporada 6B, que são aventuras que o Doutor viveu entre a sua captura e o envio de Jamie e Zoe para as suas próprias timelines até a leitura final e execução de sua sentença, com um “extra” a mais, só para dar um gostinho do quão infames os Time Lords conseguem ser. Prestem atenção na ordem dos eventos.

SPOILERS!

1.

O 2º Doutor é julgado e condenado à morte por ter roubado uma TARDIS e por interferir constantemente em diversas ocasiões da história do Universo. Enquanto aguardava a execução, ele recebeu uma visita que lhe propôs um acordo: se concordasse ir a uma missão pela CIA (Celestial Intervention Agency) e impedisse os Jogadores de modificar a História da Terra, sua sentença seria trocada de morte para um período de exílio (notem que não há nenhuma menção à regeneração forçada. Esse é o “extra” infame que os TL adicionaram depois). O Doutor então aceita a missão e a cumpre. Depois de retornar a Gallifrey, ele já é incumbido de uma visita a um “velho amigo” chamado Dastari, que chefiava uma Estação Espacial onde “experimentos perigosos” estavam em andamento.

O Doutor tem o luxo de escolher o companheiro que quisesse para esta segunda viagem e claro, ele escolhe Jamie, que é trazido de volta e, a pedido do Doutor, apenas parte de sua memória (das primeiras viagens na TARDIS) é restaurada. Estes são os eventos do livro Jogo Mundial (2005), que se passa na lacuna citada na introdução acima.

1.5

Nesse processo de restauração de memória parcial de Jamie após os eventos de The War Games, algo que havia sido apagado de sua memória muito tempo atrás (e que apesar disso, deixara ecos em seu subconsciente), ainda no começo de suas viagens com o Doutor, foi reativado. Os Time Lords acharam que eram ideias fortes o bastante para prender o jovem a um momento X ao lado do Doutor e implantaram-nas como memória oficial do escocês, sem saber o impacto que isso teria.

2.

Há muito tempo atrás, logo depois de seu primeiro encontro com os Ice Warriors, o 2º Doutor, Jamie e Victoria chegaram a uma Estação Espacial chamada Habitat. Havia um buraco negro que não deveria existir no lugar e com muito esforço e ajuda de um policial gallifreyano da Chapter 9, seus efeitos são estabilizados. Esse policial dá uma missão para o Doutor, que é visitar um amigo chamado Dastari, que chefiava uma Estação Espacial onde “experimentos perigosos” estavam em andamento. Enquanto isso, Victoria foi deixada em uma biblioteca para estudar grafologia (algo que a companion já vinha pedindo para o Doutor).

Nesta ocasião, a TARDIS está sendo controlada remotamente e o Doutor tem dificuldades de materializá-la na Space Station Camera. Não demora muito para ele perceber duas coisas: há um ataque de Sontarans acontecendo ali e já existe uma TARDIS, também controlada remotamente, materializada no lugar. O Doutor nota que é a sua própria TARDIS, no seu futuro. Ele então resolve deixar os problemas para serem resolvidos por seu “outro eu” e volta para a Habitat, sabendo que o tal “policial” o havia enviado para uma armadilha. Ao final da aventura, Victoria se junta ao grupo e estes eventos são apagados da memória dos três por uma Time Lady recém-regenerada na frente de Jamie e do Doutor, mas o processo de limpar a memória do trio não é feito com perfeição. Algumas sombras se fixam no subconsciente dos viajantes e essas sombras serão utilizadas futuramente pelos Time Lords, quando retornariam parcialmente as memórias de Jamie. Estes são os eventos de The Black Hole (2015).

NOTA: eu procurei ser o mais didático e objetivo possível para que vocês entendam que, ao contrário do que muita gente diz por aí, nem o livro de 2005 e nem o áudio de 2015 se auto-anulam ou se contradizem em relação à Temporada 6B ou mesmo a este arco dos dois Doutores. Na verdade, eles se complementam. Caso ainda existam dúvidas, vocês podem perguntar à vontade nos comentários abaixo ou, se preferirem, conferiram a sequência cronológica exata para o 2º Doutor clicando aqui.
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Space Station Camera

Investindo fortemente em nostalgia, o episódio começa em preto e branco,  evocando a era do 2º Doutor, e rapidamente ganha cores, mostrando o Doutor e Jamie em versões mais velhas (a feição envelhecida do Doutor se explica em Jogo Mundial — o stress daquela aventura + o paradoxo temporal o envelheceu –; já a feição de Jamie pode ter sido alterada pelos Time Lords ou ele foi tirado de sua linha do tempo alguns anos depois de voltar para para lá). É impressionante como depois de tantos anos, a dupla ainda conseguiu manter a doce relação que tinham no passado — e é amplamente conhecido que o trabalho juntos fez com que Patrick Troughton e Frazer Hines se tornassem grandes amigos, então isso certamente ajudou — e como o roteiro de Robert Holmes conseguiu capturar ao mesmo tempo a linha humorística e séria que vemos na reta final dessa encarnação do Doutor.

A chegada na Estação Espacial para o encontro com Dastari é rápida e guarda alguns mistérios, elemento que o autor utiliza para gerar humor e medo. No começo, um trecho de diálogo de The Faceless Ones é repetido (“Look at the size of that thing” / “Yes, Jamie, it’s a big one“) e a sensação de ciclo ou de retorno dos elementos canônicos da série em momentos marcantes da vida do Doutor se tornam ainda mais fortes.

O fato de a TARDIS se materializar em uma cozinha e a apresentação maravilhosa do Androgum Shockeye of the Quawncing Grig trazem algo diferente para o episódio. Um tom mais contemporâneo, dotado de forte humor negro e crítica ou alegoria a alguma coisa que ainda não sabemos, mas que logo se faria ver (ou seja, o consumo de carne animal, o que é compreensível, visto de o roteirista era vegetariano). Eu imediatamente notei sombras conceituais de O Massacre da Serra Elétrica na direção de arte da cozinha e figurinos do Androgum, e mais adiante, a cena de perseguição a Peri comprovaria que a produção realmente trouxe os momentos mais densos do filme para destacar o lado do canibalismo.

Notem que o texto vai rapidamente de uma cena de “ameaça cômica” e que a princípio tem uma conotação levemente sexual do Androgum para com Jamie (depois entenderemos que ele gosta mesmo de carne humana — ou de qualquer tipo de carne — e que um macho jovem parece ser sempre a melhor oferta) e chega até o encontro diplomático, mas nem tanto, do 2º Doutor com Dastari, um velho amigo. A discussão nesse momento é brilhante e até o silêncio de Jamie e as caras e bocas que ele faz são ótimos. Patrick Troughton mostra que é um monstro como ator e não está sozinho. Laurence Payne também está muito bem como Dastari, indo de uma discussão de defesa de cientistas em sua Estação Espacial até o desespero quando os Sontarans chegam e realiza o massacre no local.
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A Pesca de Gumblejack

O corte para o 6º Doutor pescando e Peri tirando sarro dele mostra o quanto Doctor Who pode ser… cruel, inclusive com um tipo de humor que impressiona pelo cinismo maldoso (em outra palavra, genial). A pescaria, apesar de parecer deslocada no começo, tem um sentido importante para o roteiro, mais adiante. O 6º Doutor imagina aqui formas bastante suculentas de apreciar um Gumblejack, mas esta vontade de consumo de carnes logo irá desaparecer de seu menu.

A pescaria insatisfatória, as discussões sempre interessantes do Doutor e Peri e a chegada da dupla à Estação Espacial apresenta um caminho orgânico na ligação entre linhas do tempo. As armadilhas da Estação, o desespero inicial de Peri com a cozinha (a direção de fotografia nesse bloco é excelente!), com a falta de oxigênio e depois com o calor sufocante contrastam com a calma às vezes enervante e blasé do 6º Doutor. Penso que essa encarnação é tão inteligente e tão estrategista (e talvez por isso mesmo com um ego do tamanho de uma montanha), que parece antever alguns movimentos de seus adversários, dando-se o luxo de esperar para agir, a fim de transformar a coisa toda mais interessante. Em outra interpretação, isso poderia ser algo irresponsável também.

O posterior encontro com Jamie e o direcionamento para a hacienda de Doña Arana, me fez imaginar, pela bizarrice interessante e pelo fato de estarmos na Espanha e ter aquele clima e música característicos, que eu estava assistindo a um sci-fi idealizado por Luis Buñuel na fase final de sua carreira.
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2 Doutores + 2,5 Androguns x Alguns Sontarans

Os Sontarans já haviam mostrado interesse em obter tecnologia dos Time Lords em The Time Warrior e em The Invasion of Time, mas aqui esse desejo ganha uma deixa mais perigosa e cheia de possibilidades. As duas frentes de ação, na Estação Espacial e na Terra; o papel de Dastari e dos dois Androguns e o progressivo papel dos Doutores em lugares diferentes, constituem uma caçada e ao mesmo tempo uma construção de plano deliciosa de se assistir, em um lado incentivando os Sontarans (guerreiros e estrategistas por natureza) e de outro, intensificando o perigo de essa tecnologia realmente ir parar nas mãos dos cabeças-de-batata.

A direção de Peter Moffatt valoriza as sequências de ação, acompanhando de perto lutas e escapadas enquanto a edição procurava intercalar bem os planos, que mesmo em situações mais calmas, trazem algo de maior impacto narrativo e empurra o episódio para outra fase de correria. Elementos de A Ilha do Dr. Moreau são fortemente percebidos e, na reta final, quando o 2º Doutor é parcialmente transformado em um Androgum e segue para a cidade ao lado de Shockeye em busca de um restaurante para comer o máximo que conseguirem, temos um bela homenagem a uma das melhores peças de teatro já escritas, Esperando Godot.

O final do arco é triste, desalentador mesmo, chegando até a emocionar um pouco. Talvez por que o Doutor está ligado àquele acontecimento e por estar perto de sua outra encarnação, as consequências de ter sido parcialmente um Androgum irá ter reflexos apenas na personalidade do 6º Doutor, que já ao final da aventura declara que se tornou vegetariano e de maneira bastante infame, impõe a mesma dieta a Peri (desaprovo veementemente essa ação forçada).

The Two Doctors é uma aventura sensacional. Seu ritmo e construção de personagens, o encontro entre as duas encarnações, a bela interação entre os companions e os bons momentos de ação individual parecem funcionar de maneira afinadíssima aqui. Existem pequenos impasses como o 6º Doutor ser mandão a ponto de impor coisas sem dar alternativa a Peri ou a forma meio boba como os Sontarans são vencidos, mas esses pontos não diminuem o valor do grande encontro. Pena que seria o último da Série Clássica (isso… se não contarmos o “outro Doutor”, o Sr. Valeyard, em The Trial of a Time Lord). Um excelente arco no meio de uma temporada e de uma era problemática para a série.

The Two Doctors (Arco #140) — 22ª Temporada
Direção: Peter Moffatt
Roteiro: Robert Holmes
Elenco: Colin Baker, Patrick Troughton, Nicola Bryant, Frazer Hines, John Stratton, Jacqueline Pearce, Laurence Payne, James Saxon
Audiência média: 6,50 milhões
3 episódios (exibidos entre 16 de fevereiro e 2 de março de 1985)

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