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Crítica | Dogville

por Marcelo Sobrinho
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“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie.”

Epístola aos Efésios – capítulo 2, versículos 8 e 9

Lars von Trier já era um diretor muito bem quisto no cinema europeu quando seu filme Europa perdeu a Palma de Ouro para os irmãos Coen, no Festival de Cannes de 1991. Erguendo o dedo do meio para Roman Polanski (presidente do júri), o dinamarquês ia embora do festival sem o prêmio principal, mas seu ato simbolizava o que seria uma marca em toda a sua carreira – muito talento, grandes ideias, com resultados muitas vezes estupendos, mas sempre cercados de polêmicas e excessos. A afirmação do diretor de que seu processo criativo é movido por drogas é tão tola quanto acreditar que Edgar Allan Poe só escreveu o poema O Corvo por estar embriagado. O certo é que Lars von Trier adora jogadas de marketing, que só fazem criar mitos em torno de si. Quanto a Cannes, ele venceria o almejado prêmio nove anos depois com o também excelente Dançando no Escuro, uma brilhante realização em termos de cinema, mesmo eu achando pavorosa a música de Björk.

Um dos criadores do movimento Dogma 95, Lars von Trier pouco seguiu seus próprios mandamentos e seu melhor filme (para mim e para muitos) subverteu a grande maioria deles. Falo de seu criativíssimo longa-metragem de 2003 – Dogville, que inicia uma trilogia inacabada sobre os EUA, composta ainda por Manderlay e Washington (obra ainda por vir). Dizer que Dogville é só um filme sobre a maldade ou sobre a vingança é uma simplificação um tanto tosca para tamanha riqueza tanto do ponto de vista técnico e conceitual, como também em termos de ideias. Acho frustrante quando leio colegas reduzindo obras tão abertas a fórmulas tão simplificadas. Tentarei oferecer uma visão mais abrangente do filme de Lars von Trier, contudo sem nenhuma pretensão de esgotar a discussão.

O primeiro aspecto de Dogville que chama a atenção é a construção técnica do filme. Ele se passa inteiramente sobre um palco (numa interface com o teatro, especialmente o de Bertold Bretch), com iluminação artificial (na contramão do Dogma 95) e com marcações de cenário feitas a giz. A separação entre casas e ruas é demarcada somente por linhas no chão e até o cachorro Moisés (fundamental na elaboração filosófica da obra) é desenhado a giz no cenário. Lars von Trier constrói um filme minimalista, em que as interpretações de seu elenco e sua direção minuciosa garantirão o resultado final, tal como acontece no próprio teatro. A câmera nas mãos, cláusula pétrea do Dogma 95, aparece em grande medida, mas também se realizam muitos movimentos verticais, com a câmera em plongèe mergulhando sobre o cenário.

Ao colocar os personagens sobre o mesmo palco, com uma cenografia tão reduzida, o diretor produz ainda um significado importante para a obra. Nada transcende a Dogville. Fala-se, em vários momentos do filme, que grandes montanhas cercam a pequena cidade, isolando-a do restante do mundo. Mas na realidade nem elas aparecem efetivamente no cenário, ficando todas as ações e todos os conflitos circunscritos aos limites daquele palco, circundado por luzes brancas que não oferecem nenhuma perspectiva ou fuga possível. Isso tem muito a ver com a crítica feroz que Lars von Trier faz à sociedade americana, que vive enclausurada em seu mundo particular, alheia às carências de um mundo que sempre está lá fora, inescrutável. Extrapolando um pouco o que efetivamente está na obra, é possível fazer uma pergunta retórica: os atentados de 11 de Setembro não guardariam relação com tudo isso?

A ideia central em Dogville é a desconfiança do bem. A história da jovem e ingênua Grace (Nicole Kidman em grande performance), que chega a uma cidade do interior dos EUA em busca de refúgio, revela a todo momento as dúvidas que o diretor tem a respeito da bondade do homem. A reunião inicial, em que os cidadãos decidem por permitir a permanência da jovem por duas semanas, termina com o narrador desnudando a verdadeira natureza da decisão. Ele revela que os habitantes saíram da reunião satisfeitos com o bem que fizeram, pensando intimamente que haviam feito muito mais do que a maioria faria. O altruísmo aparente mais tinha a ver com a criação egóica de uma boa autoimagem do que propriamente com atender à necessidade de acolhimento de Grace. Lars von Trier é cético também nas entrelinhas de seu roteiro (muito fluente, vale ressaltar).

O personagem principal do filme, além de Grace, é o aspirante a filósofo Thomas Edison Jr. (Paul Bettany). É com extrema ironia que Lars von Trier escolhe esse nome para o seu protagonista, já que o americano Thomas Edison é o aclamado inventor da lâmpada elétrica. Penso que o dinamarquês faz uma referência clara ao Iluminismo, especialmente os de Rousseau e Voltaire, que tinha como objetivo levar a razão (as “luzes”) para a sociedade europeia do século XVIII. Tom, como é chamado pelos habitantes, é o mentor filosófico da cidade, que convoca reuniões periódicas para aprimorar o convívio e o desenvolvimento moral de Dogville. Cheio de uma pretensa sabedoria, conhecedor de tantas teorias sociais, o personagem do ator britânico Paul Bettany personifica o salvacionismo político.

Os atos de todos os habitantes da cidade (inclusive os de Tom) revelam pouco a pouco a inveja, a covardia e a crueldade que sempre existiram na estrutura da alegórica cidade. As ideias de Tom sobre a sociedade ideal desmancham em um fracasso retumbante e ele mesmo descobre-se vil e mesquinho. O pensador britânico David Hume dizia ser imaginário qualquer plano de sociedade baseado na “profunda modificação dos hábitos da humanidade”. As teorias de Tom são o que o também britânico Edmund Burke chamava de “closet theories” (“teorias de gabinete”), que não pensam o mundo em conformidade com o real, mas criam, dentro de escritórios, a portas fechadas, um utopismo que só nos afasta dele. Assim nascem as grandes mazelas da humanidade e muitas delas acabam naturalizadas. Lars von Trier trata disso na primeira cena de estupro de Grace, na qual toda a cidade mantem seu funcionamento normal enquanto a jovem é impiedosamente violentada.

Ainda dentro do pensamento de Edmund Burke, os cidadãos de Dogville tornam-se o fruto mais perigoso das teorias de gabinete – pessoas que “amam a humanidade, mas detestam seu semelhante”, pois a humanidade é uma abstração, mas seu semelhante não é. Dessa maneira, Vera (Patricia Clarkson), que tão preocupada se diz com a educação das crianças, lhes dá o mau exemplo do rancor e da tortura. Ben (Zlejko Ivanek), que oferece ajuda a Grace como alguém capaz de arriscar a própria vida em nome do bem, termina por enganá-la. Tom Edison pai (Philip Baker Hall) concorda com a utilização de uma coleira de metal, amarrada a uma roda, que colocam no pescoço de Grace. Mas a corrige quando ela usa o termo “castigo”, afinal aquela não era uma sociedade inclinada ao mal. E assim, cada um revelará seus instintos mais baixos, sem jamais abdicar do verniz da bondade e da justiça.

Há ainda uma referência religiosa no filme. Grace significa “graça”, em alusão à ideia de graça divina, presente que Deus dá à humanidade independente de suas obras. A personagem de Nicole Kidman, com sua pureza e estoicismo (é açoitada por todos e sempre oferece a outra face), encarna a graça divina que o criador oferece a Dogville. Mas na perspectiva do diretor dinamarquês, a humanidade a desperdiça e deve então responder por seus atos. O filme termina em tom de tragédia e a única criatura poupada é o cão Moisés. Moisés é a figura bíblica que conduz o povo hebreu à terra prometida de Canaã, sendo impedido de entrar por seu pecado. A humanidade de Dogville também fracassa em sua concepção de mundo idealizado e os latidos do cão para a câmera exprimem a urgência de reconciliação com o real.

Dogville é provavelmente a grande obra-prima de Lars von Trier e um dos grandes filmes do século XXI. Muito se fala da relação conturbada do diretor com a atriz Nicole Kidman durante as filmagens, mas essa polêmica (certamente impregnada pelo lado marketeiro do dinamarquês) ficou de fora do filme, incrivelmente contundente em toda a temática que aborda. O que mais impressiona no filme de Lars von Trier é a consciência de que o bem tem contornos muito mais imprecisos do que gostaríamos e que, muitas vezes, será ele o solo mais fecundo para o surgimento dos piores demônios. A esperança possível reside em entender que, como diz o português João Pereira Coutinho, nossa missão não é garantir o paraíso sobre a Terra, mas sim evitar que o inferno se instale.

Dogville – Dinamarca/ Suécia/ Finlândia/ Alemanha, 2003
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Nicole Kidman, Paul Bettany, Blair Brown, Philip Baker Hall, Stellan Skarsgard, Zeljko Ivanek, Bill Raymond, James Caan, Patricia Clarkson, John Hurt
Duração: 178 minutos

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