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Crítica | Dois Dias, Uma Noite

por Luiz Santiago
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estrelas 4

Os irmãos Dardenne, queridinhos dos grandes festivais de cinema europeus e diretores antenados nos mais diversos temas em pauta na atualidade — seja em termos factuais ou simbólicos — trazem-nos em Dois Dias, Uma Noite (2014) uma tocante análise individual e social para a crise europeia e mundial de desemprego, explorando os cenários pessoais dos indivíduos, a colocação deles na sociedade, a relação com a empresa e os colegas de trabalho.

Como o tema é bastante amplo e pode gerar as inúmeras discussões, os diretores, que também assinam o roteiro, mantiveram a abordagem em um plano de dois caminhos, um psicológico e outro social. No primeiro temos Sandra (Marion Cotillard) em destaque, uma mulher que está se curando de depressão e que, certa tarde, recebe a notícia de que provavelmente irá perder o emprego. No segundo temos a visita de Sandra aos colegas de trabalho numa tentativa de convencê-los a votar a favor dela em uma escolha que a empresa recolocará em pauta: ou a permanência de Sandra no quadro de funcionários ou um bônus de mil euros para cada trabalhador.

Como o temo diegético já é claramente definido no título do longa, o espectador se pergunta se os diretores conseguirão manter viva durante uma hora e meia uma história que facilmente poderia ser abordada em menor tempo. Não demora muito e imaginamos que a obra será uma grande enrolação e que as repetições das visitas tornarão a projeção cansativa. Todavia, nos enganamos. Os cineastas conseguem sustentar com competência o que propõem, explorando não só a vida da protagonista e de seus colegas de trabalho mas também mostrando pequenos momentos, durante o final de semana, que marcam o desenvolvimento do roteiro colocando o dedo em outras feridas de convivência além do campo profissional.

Mas a premissa central dos Dardenne em Dois Dias, Uma Noite é a problematização das relações humanas fora do núcleo familiar. E isso pode parecer estranho à primeira vista porque as famílias de todos os personagens do filme são colocadas em destaque na quase totalidade dos diálogos. No entanto, os familiares só vêm à tona com muleta ou justificativa de alguém para ficar com o bônus oferecido pela empresa, mesmo que não tenha, como indivíduo, nada contra a pessoa de Sandra. Percebam que os diretores usam de um conflito externo (o trabalho) para trazer à tona problemas internos (a depressão de Sandra, um casamento infeliz, a péssima relação entre pai e filho, a ilegalidade…).

É nas relações sociais, no coleguismo de trabalho,as aparências X realidade que o roteiro planta a discórdia e joga para o público o dilema moral que os personagens só podem viver de um lado, mesmo que digam se colocar no lugar do outro. Afinal, o bônus é uma oferta da empresa, ninguém está “tirando” nada de ninguém e, pelo menos a maioria de todos os trabalhadores do mundo ficariam felizes com um bônus grande ao término do mês, afinal, é um dinheiro a mais para ser investido em projetos familiares ou pessoais diversos. Todavia, a escolha desse dinheiro que antes não existia na folha de pagamento colocará uma das funcionárias da empresa na rua. O que fazer em uma situação dessas?

A direção do filme é precisa ao optar por trabalhar o amadurecimento/cura/despertar de Sandra ao passo que as visitas acontecem. Com a montagem pontualíssima de Marie-Hélène Dozo (parceira dos Dardenne desde A Promessa, 1996), presenciamos pequenos momentos de felicidade (através da comida e da música) entre Sandra, o marido e os filhos, ao passo que ela definha e posteriormente se fortalece, aceitando o desemprego e resolvendo sair em busca de alguma outra coisa. A interpretação emotiva de Marion Cotillard praticamente dá ao filme esse tom de desesperança e conforto ao mesmo tempo, uma dualidade que vemos desde os primeiros minutos, onde se contrasta a casa e o ambiente familiar da protagonista com o seu desespero pessoal e a já esperada dificuldade financeira vinda com o possível desemprego.

Num momento de egoísmo endêmico e poucas demonstrações de humanidade, Dois Dias, Uma Noite é um verdadeiro sinal dos tempos. Com grande estrutura moral e ética, o longa nos traz uma situação de medo e possibilidade que certamente já tomou conta de todo trabalhador ao menos uma vez na vida, especialmente se ele tem uma família para sustentar. É o bom e velho cinema crítico fazendo da realidade material bruto para se construir.

Dois Dias, Uma Noite (Deux jours, une nuit) – Bélgica, França, Itália, 2014
Direção: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Roteiro: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Elenco: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée, Batiste Sornin, Pili Groyne, Simon Caudry, Lara Persain, Alain Eloy, Myriem Akeddiou, Fabienne Sciascia, Anette Niro
Duração: 95 min.

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