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Crítica | Dolls (2002)

O amor é belo e trágico.

por Kevin Rick
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Desde que eu me entendo por gente, o amor e a tragédia estiveram ligados na arte. Seria o efeito shakespeariano de que a tragédia é uma forma de consumação do amor? Em grande parte, acredito que sim. Romeu e Julieta certamente teve um impacto em como pensamos o arquétipo do romance. Paixão e dor estão bem longe de serem dissociativos. São, na verdade, uníssonos, intimamente entrelaçados pelo mundo de fora e seus delitos. O amor até pode ser considerado um sentimento puro e incorruptível, mas apenas em uma essência divina, pois misture-o com o fator humano e naturalmente teremos falhas; tragédias. À medida que envelhecemos, a visão inocente do amor se torna turva e inexata, demonstrando como Shakespeare e outros infinitos artistas estiveram fazendo um reflexo da vida real, tal qual a arte sempre fez.

Dolls é um dos filmes que melhor encapsula essas desventuras do amor, especialmente de maneira simbólica. Mais um clássico nipônico de Takeshi Kitano, a obra não é necessariamente inspirada pelos romances trágicos ocidentais, mas sim pela tradição japonesa de bunraku, ou peças de fantoches. O filme começa com uma performance dos bonecos (dolls) se movendo pelo palco, manipulados por seus artistas, e então segue para as três histórias de amor contadas por Kitano no filme. É como se houvesse uma espécie de metáfora, de que o cineasta está manipulando seus personagens como bonecos, passando pela vida sem o controle de seus destinos – nesse sentido, qual de nós não é um boneco? – para fazer uma reflexão profunda sobre o amor e a vida.

Ou, melhor dizendo, amores. Como disse, Kitano nos apresenta três conjuntos de histórias com seus personagens principais, cada um com seu retrato distinto, ainda que simbolicamente e tematicamente semelhantes, sobre o amor. No núcleo que consideraria o principal, temos um jovem chamado Matsumoto (Hidetoshi Nishijima) que rejeita seu noivado com sua noiva, Sawako (Miho Kanno), para se casar com a filha do presidente de sua empresa a mando de seus pais e por dinheiro. Quando sua ex-noiva tenta o suicídio e acaba em um estado semi-vegetativo, ele a leva para fora do hospital e os dois fogem e vagam pelo mundo amarrados por uma corda vermelha. Também temos a história do idoso Hiro (Tatsuya Mihashi), um chefe do crime da Yakuza que tenta encontrar uma paixão antiga e acaba descobrindo que sua amada o espera todos os sábados para almoçar há décadas. E, por fim, a trama protagonizada por Nukui (Tsutomu Takeshige), um jovem obcecado pela estrela pop Haruna (Kyoko Fukada), que decide se cegar quando a cantora se envolve em um acidente de carro que a deixa desfigurada.

Notem como esses gestos são exagerados e até causam estranheza em seus excessos. Mas o desfecho de Romeu e Julieta e de incontáveis contos nipônicos de romance não seguem a mesma rota? São reações esperadas pela tragédia clássica e pelo teatro tradicional de bunraku. Kitano utiliza os gestos dramáticos como simbologia catártica e melancolia alegórica – inclusive temos algumas cenas oníricas perturbadoras de Sawako. Culpa simbolizada em uma corda vermelha, como um laço infinito de punição amorosa. O sacrifício da liberdade em atos de abnegação incompreensíveis. A solidão devota na esperança do aparecimento do amado. Arrependimento; cumplicidade; fanatismo; entre outros sentimentos evocados dependendo da interpretação do espectador, estão diluídos dentro desses gestos como alicerces e poluidores do amor – como ser puro em um conjunto tão difuso e plural?. Também acho interessante notar como a figura masculina é o estopim da tragédia, como no abandono de Matsumoto e Hiro pelo dinheiro e sucesso, e na sugestão de que Nikui causou o acidente de Haruna, como uma espécie de subtexto crítico para a sociedade patriarcal e machista do Japão, como Kitano já vinha fazendo na sua filmografia de gângsteres e juventude transviada.

A maneira ritualística e contemplativa que o cineasta move o filme, assim como a montagem que mistura a cronologia e fragmenta as três histórias entre si, constituem uma das experiências mais meditativas que assisti no Cinema, barrando até o estilo contemplativo de outros filmes de Kitano. Somos forçados a recuar e repousar para seus simbolismos avassaladores. Os três contos são vagamente tecidos entre si, mas Dolls não é sobre sentido narrativo e relações objetivas. A disjunção narrativa é apenas um artifício para se criar um sentimento amplo. Um sentimento misto de tristeza, compaixão e beleza em seus silêncios dolorosos, imagens belas e a tristeza elegíaca da trilha sonora de Joe Hisaishi. Os contos vêm e vão, no seu próprio ritmo tardio e atmosfera deprimida, se completando em um mosaico análogo da experiência melancolicamente bela que é amar.

Atravessando a tela como uma pintura móvel entre paisagens naturalistas e urbanas de tirar o fôlego, com a fotografia oferecendo belíssimas cenas de flores de cerejeira e folhas vermelhas de outono, Takeshi Kitano cria com Dolls uma passagem do tempo sazonal pela beleza e solidão do seu visual estilizado e de seus personagens angustiados. Como muitos de seus filmes, temos a contradição do belo imagético e do trágico narrativo, e o enfoque no que é essencial para nossa trajetória como seres humanos. Propostas especialmente poderosas quando falamos sobre amor. Abrindo o espaço para uma história particular, eu estava vendo o filme com minha namorada e ao final só queria abraçá-la com ternura e amá-la para sempre. Quanta catarse, não é mesmo? Uma tragédia romântica para ficar na história da Sétima Arte.

Dolls (Dōruzu, ドールズ) – Japão, 2002
Direção: Takeshi Kitano
Roteiro: Takeshi Kitano
Elenco: Miho Kanno, Hidetoshi Nishijima, Tatsuya Mihashi, Chieko Matsubara, Kyoko Fukada, Tsutomu Takeshige,
Duração: 114 min.

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