Home FilmesCríticas Crítica | Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Sem Spoilers)

Crítica | Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Sem Spoilers)

A câmera de Sam Raimi.

por Kevin Rick
9,7K views

  • Confira aqui, a versão com spoilers

Existe uma sequência em Homem-Aranha 2 que acho extremamente memorável: a cena do hospital em que os tentáculos mecânicos de Otto Octavius matam os médicos, momento em que o personagem se torna um verdadeiro vilão; o nascimento de um monstro. É basicamente uma cena de terror inserida num filme de super-herói com classificação indicativa infantil. Como isso é possível? Bem, Sam Raimi, o diretor do longa, faz uma sequência assustadora dispondo de diferentes perspectivas e ângulos da cena, uso inteligente de iluminação, uma fantástica edição, e até se aproveitando de utensílios médicos para compor uma chacina perturbadora sem uma gota de sangue. Para quem não sabe, Raimi também é o diretor de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, onde ele novamente aplica suas raízes de horror de A Morte do Demônio no gênero super-heróico. Mas, desta vez, não é apenas uma cena, é o raio do filme todo.

Antes de desenvolver essa ideia, porém, é preciso contextualizar a premissa da narrativa e da obra enquanto continuidade no Universo Cinematográfico Marvel, dando seguimento direto aos acontecimentos de Homem-Aranha: Sem Volta Para CasaWandaVisionLoki (em menor medida) e, claro, o primeiro Doutor Estranho, explorando o elemento principal desta nova fase da Marvel: o multiverso. A tarefa de Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é complicada, tendo que pedir ajuda de Wanda (Elizabeth Olsen) para impedir um vilão que ameaça a existência de vários universos e realidades. A identidade do antagonista permanecerá sem identificação aqui por ser uma crítica sem spoilers, mas o vilão da vez quer capturar America Chavez (Xochitl Gomez) para roubar seu poder de abertura de portais no multiverso. Parece complicado, não é? Bem, nem tanto.

Talvez a melhor escolha da produção, para além da contratação de Raimi, está no roteiro simples e enxuto de Michael Waldron. É um filme que poderia facilmente cair numa narrativa complexa com muitas explicações sobre o multiverso, querer fechar pontas soltas de obras anteriores do UCM em detrimento da história em si, e, claro, tornar-se um banho vazio de fan service como aconteceu no último filme do Teioso, mas o texto é bem descomplicado. Waldron está mais interessado em dar base para o senso de espetáculo de Raimi do que tornar a obra um orgasmo nerd de teorias e nostalgia. Aliás, o longa dispõe de apenas uma única situação que consideraria fan service para os fãs aplaudirem, e até nisto o filme sabe utilizar as referências de forma orgânica na história, como parte da narrativa maluca, ainda subvertendo a nostalgia com um desfecho de terror cômico inesperado e completamente hilário.

Existe até um certo descaso com mitologia no filme. O multiverso é basicamente uma alegoria sem explicações ou regras; a história tem um milhão de Macguffins (começando pela própria America Chavez e chegando em livros místicos); e a narrativa dispõe de alguns didatismos (até meio chatos no início do filme) para passar rapidamente por contextualizações, indo direto ao ponto central da história: o exercício de gênero do Raimi, mesclando heroísmo com horror. O cineasta está inspiradíssimo, usando e abusando de zooms vertiginosos, ângulos holandeses, transições de cenas selvagens, edição sobreposta, close-ups extremos, jumpscares esparsos e bem compostos, tomadas rápidas que ampliam ou afunilam ambientes, e seus característicos planos do ponto de vista dos personagens. Sua câmera é basicamente um personagem, perseguindo, agarrando, dando cambalhotas, batendo e voando entre dimensões. Tudo isso ao som de uma trilha sonora grunge riffs estranhos que delineiam a atmosfera de terror oitentista.

Também é marcante como Raimi controla o caos. Cada composição de cena é muito cuidadosa, indo de momentos de suspense e tensão (especialmente em ambientes domésticos), até as situações anárquicas das perseguições do vilão que, aos poucos, vai se transformando numa espécie de demônio no ótimo uso de horror corporal e presença constante, urgente e onipresente do personagem – até também com uso de sangue, no teste que o cineasta faz com a classificação indicativa. Às vezes é uma obra de monstro diretamente saída de filmes B, em outros momentos é onírico e surreal em suas sequências caleidoscópicas (muito mais imaginativas e constantes do que no primeiro filme). Toda essa diversidade e criatividade refletem perfeitamente a história que atravessa infinitos reinos alternativos, com zumbis, assombrações, e por aí vai. Sobrando louvor para o design de produção, a fotografia que transita naturalmente entre as explosões de cor e os momentos sombrios, e principalmente o CGI que favorece à experiência, diferente dos efeitos especiais escuros e genéricos de outros blockbusters recentes. Aliás, existe uma cena em que Strange batalha com notas musicais que é um deslumbre aos olhos e ouvidos, uma sinfonia visual inacreditável.

Sempre há algo novo para ver, descobrir e sentir em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Também é extraordinário como, no meio da insanidade, Raimi consegue equilibrar diferentes tons. Por vezes o filme é arrepiante e tenso, contendo um humor mórbido, mas em outros momentos há uma sensação cômica boba (no melhor sentido da palavra), e também muita substância dramática. Raimi evoca temáticas similares à sua trilogia do Homem-Aranha, como responsabilidade, poder e egoísmo, dispondo de vários momentos tocantes num multiverso cheio de espelhamentos internos e possibilidades de caráter. Tenho um certo incômodo em como o arco do protagonista é subsidiário ao de Wanda (de longe a mais fascinante personagem na atual configuração do UCM), mas ambos os personagens ganham seus instantes emocionantes e reflexivos, numa história tingida de terror que transita entre intimidade emocional e viagens visuais.

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness) – EUA, 2022
Direção: Sam Raimi
Roteiro: Michael Waldron
Elenco: Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Chiwetel Ejiofor, Benedict Wong, Xochitl Gomez, Michael Stuhlbarg, Rachel McAdams
Duração: 126 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais