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Crítica | Doutor Jivago (1965)

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Boris Leonidovitch Pasternak nasceu em Moscou, no Império Russo, em 10 de fevereiro de 1890. Estudou filosofia na Alemanha e se sagrou poeta no Império Russo e na futura União Soviética, com uma obra voltada inicialmente para o futurismo, mas com temáticas adicionais que lhe seriam caras ao longo da vida literária, como a força da natureza, o amor e os laços humanos. Sua poesia começaria a mudar a partir de Minha Irmã, Vida (1922), considerada uma revolução para o gênero em seu país. Foi também nessa década que as sementes políticas foram plantadas em sua obra, o que o levaria a ser mal visto pelo sistema socialista na década seguinte. Seus livros foram proibidos e ele perseguido. Em 1957, o autor conseguiu contrabandear para a Itália o manuscrito de um livro rejeitado em seu país. Publicado no mesmo ano, Doutor Jivago tornou-se um best-seller e deu a Pasternak o Prêmio Nobel de Literatura em 1958, que ele não pode receber, por motivos políticos.

Após a explosão de vendas do livro no Ocidente (em tempos de Guerra Fria), Doutor Jivago chamou a atenção de alguns estúdios e produtores de cinema, sendo abocanhado por Carlo Ponti, que encontrou um David Lean vindo de dois gigantescos sucessos (A Ponte do Rio KwaiLawrence da Arábia) procurando material para filmar. Era uma oportunidade de ouro. Durante as negociações, Ponti quis escalar sua esposa Sophia Loren para o papel de Lara, mas Lean, cujas condições para aceitar qualquer projeto era ter controle sobre a equipe, rejeitou a proposta, escalando Julie Christie para o papel, além de boa parte do pessoal que trabalhara com ele em Lawrence da Arábia.

Uma das coisas que sempre se comentou a respeito de Doutor Jivago é a sua fidelidade ao livro. Claro que alguns personagens são desenvolvidos de forma diferente, mas a grande massa literária está lá, inclusive todo o descontentamento político de Pasternak para com o governo soviético, o que talvez tenha funcionado bem na literatura, mas no cinema, acabou criando atalhos desnecessários, alterando aquilo que era, em realidade, a essência do diretor David Lean: contar uma grande e boa história. Mas isso quer dizer que Doutor Jivago não seja uma boa e grande história? Não, não quer dizer. Todavia, é uma história que se perde no emaranhado da Revolução, nos meandros do flashback, no desfecho extremamente preocupado em estabelecer um ciclo da forma extremamente explicada e na longa (e improvável) conversa entre o Tenente-General Yevgraf (o fantástico Alec Guinness, brigado até o último verbo com David Lean) e sua provável sobrinha. Em outras palavras, Doutor Jivago é um filme grandioso em muitos sentidos mas não no roteiro, que é, em essência, sem foco.

Nós começamos e terminados a narrativa na União Soviética dos anos 1950 (ou final dos anos 1940). O cenário real é a Barragem de Aldeadávila, na Espanha, mas o desenho de produção e a fotografia esplêndida de Freddie Young conseguem nos localizar perfeitamente na União Soviética entre o final do governo de Stálin e o início do governo de Khruschev. Yevgraf está à procura de sua sobrinha e, ao receber e “interrogar” uma jovem que acredita ser quem procura, temos a regressão para a Rússia do período czarista, onde conhecemos Yuri Jivago (Omar Sharif, no papel de sua vida), Lara (Julie Christie, em uma interpretação que cresce a cada cena) e Tonya (Geraldine Chaplin, em seu primeiro papel de destaque no cinema). Já nessa mudança temporal há algum desconforto, mas ainda é o começo do filme e deixamos passar.

O problema é que essa tendência episódica jamais abandona o longa. As histórias são expostas em blocos mais ou menos coesos entre si, porém, com pouca contribuição para o andamento do texto a longo prazo. Na segunda vez em que esse desvio acontece, na explosão da Revolução Russa, as diferentes atmosferas dramáticas ainda parecem aceitáveis, mas já a esse ponto (a caminho da 2ª hora do filme) a qualidade final estava comprometida. A jornada tende a piorar à medida que Lean e o roteirista Robert Bolt estendem em demasia as sequências da Revolução ou alternam um tanto inadvertidamente algumas dessas sequências ao triângulo amoroso. Não chega a ser exatamente confuso, mas é dramaticamente injustificável. Tome como exemplo a cena em que Jivago é sequestrado no caminho de volta para casa, logo após “terminar” com Lara. Absolutamente nada do que vem depois faz sentido dentro da trilha que o filme seguia até o momento do sequestro. A Revolução já tinha sido mostrada até demais, as consequências dela já haviam sido estabelecidas e, mesmo assim, partimos para uma via crucis de Jivago como médico dos partisans contra o Exército Branco por um longo tempo, apenas para constar na sua lista de agruras. Não dá para aceitar.

A história de amor, se a pensarmos de forma geral, é a que menos sofre com o andamento do roteiro, exceto no desfecho, quando a primeira família de Jivago simplesmente sai de cena e não vemos nenhum esforço do médico e poeta para revê-los, algo mais palpável além de uma carta deixada por Tonya. Foi uma saída fácil para tentar resolver o drama do triângulo amoroso, ação que acabou descaracterizando o personagem de Omar Sharif. E não adianta utilizar a justificativa de que “a guerra muda as pessoas“, porque àquele ponto do filme o espectador já conhecia perfeitamente os personagens para saber quem mudaria com a guerra e quem não mudaria. Compare o crescimento de Yuri, Pasha e Komarovsky no decorrer da fita e comprove.

Para a sorte de David Lean (e nossa, que temos 200 minutos de filmes para ver) é que a equipe que trabalhava com ele realizou um trabalho excepcional, especialmente o fotógrafo Freddie Young, o diretor de arte Terence Marsh, o desenhista de produção John Box e o compositor Maurice Jarre. Guiados por um excelente diretor, esses profissionais entregaram grandes trabalhos que dialogam entre si nos mínimos detalhes, fato percebido já em uma das primeiras cenas, no enterro da mãe do pequeno Yuri (interpretado pelo filho de Omar Sharif, Tarek). Tudo naquela sequência é fluído, organizado com uma dinâmica delicada, típica de David Lean, fotografada sem exageros de contraste de cor por Freddie Young e com uma adequada inserção musical folclórica de Maurice Jarre, que mistura os cantos religiosos a um tema nostálgico, onde cabe percussão, tons bastante graves e retorno rápido aos agudos quando Yuri olha para a árvore próxima ao túmulo de sua mãe e parece sentir-se livre, apesar de triste. A ideia de ciclo da vida poucas vezes foi filmada com tamanho sentimento e poesia como nessa abertura.

Young ainda merece créditos por sua terna iluminação de interiores, muitas vezes utilizando-a como um contraste ao que a trama apresentava no momento — preste atenção nas cenas em que Jivago parece perturbado ou inquieto por alguma coisa. Tomadas com lareiras, fogões ou velas são as suas preferidas, justamente pela aparência sugestiva que podem passar, e alcançam o maior ápice na decoração do Palácio de Gelo (com camadas de cera de abelha), que tem uma variação enorme de tonalidades que combinam com o desenho de produção como se contassem uma história por si só. Já em um campo macro, vai o destaque absoluto para as panorâmicas do diretor sobre as paisagens russas (que não eram na Rússia, porque o filme foi rodado na Espanha, Finlândia e Canadá) e que deixam o espectador simplesmente sem fôlego.

Junto ao belíssimo “Tema de Lara” de Maurice Jarre e uma experiente direção de atores e (muitos) figurantes, o conteúdo final de Doutor Jivago está entre o épico romântico e o politicamente anticomunista, a maior parte do tempo. Como disse no início do texto, trata-se de um filme grandioso em muitos sentidos, à parte o seu roteiro com quebras e desvios que simplesmente não deveriam acontecer, mas que não impedem Doutor Jivago de estar para sempre na memória dos espectadores, que só podem sair da sessão apaixonados pela beleza e sentimentos que a obra suscita. Um feito só conseguido por clássicos absolutamente humanos poderosos.

Doutor Jivago (Doctor Zhivago) — Estados Unidos, Itália, Reino Unido
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt (baseado na obra de Boris Pasternak )
Elenco: Omar Sharif, Julie Christie, Geraldine Chaplin, Rod Steiger, Alec Guinness, Tom Courtenay, Siobhan McKenna, Ralph Richardson, Rita Tushingham, Jeffrey Rockland, Tarek Sharif, Bernard Kay, Klaus Kinski
Duração: 197 min. / 200 min. (relançamento de 1992) / 192 min. (relançamento de 1999)

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