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Crítica | Drive My Car, Sherazade e Kino, de Haruki Murakami

As bases para o filme de Ryusuke Hamaguchi.

por Ritter Fan
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Diferente do que muita gente menciona por aí, Drive My Car, o longa-metragem de Ryusuke Hamaguchi, não é baseado apenas no conto homônimo do aclamado autor japonês Haruki Murakami. O diretor e co-roteirista tirou a estrutura central do referido conto, mas também bebeu inspiração de outros dois, Sherazade, que empresta forma às relações sexuais que vemos no longa e Kino, que sutilmente empresta o flerte com a violência que (não) vemos no longa, todos contidos na coletânea apropriadamente intitulada – como a de Ernest HemingwayHomens Sem Mulheres, que coloca a mulher ou, melhor dizendo, as consequências de sua ausência, no centro dos questionamentos.

Portanto, abaixo o leitor encontrará as críticas separadas para cada um dos contos independentes de Murakami que Hamaguchi usou como alicerces de seu aclamado filme.

Drive My Car

Kafuku é um ator veterano, mas de pouca relevância que, em razão de direção sob influência de álcool e glaucoma, é obrigado a contratar um motorista para dirigir seu velho, mas querido Saab 900 conversível, na cor amarela. Por sugestão de seu mecânico, ele acaba contratando a jovem de 24 anos Misaki Watari para dirigi-lo todos os dias de casa até o teatro em Ginza e do teatro até sua casa, em razão de sua participação na adaptação para a Era Meiji da peça Tio Vânia, do russo Anton Tchekhov. Essa combinação de eventos leva o protagonista a conversar com sua motorista sobre sua vida, o que o leva a refletir sobre sua amada esposa vítima de câncer e, principalmente, os casos com outros homens que ela tinha sem jamais revelar a ele e sem que ele jamais a confrontasse.

Mesmo narrado em terceira pessoa limitada, ou seja, com os eventos presos à interação entre Kafuku e Misaki e às reminiscências que seguem daí, Haruki Murakami, um dos grandes escritores modernos japoneses, já no primeiro parágrafo é capaz de fazer do leitor seu cúmplice ao inserir um não tão sub-reptício pronome pessoal na primeira pessoa do plural e curiosamente quando o autor aborda o que seu protagonista acha de mulheres na direção, que basicamente se dividem em dois grupos, ou muito agressivas ou muito tímidas, ainda que sempre mais cuidadosas dos que os homens. Parece uma abordagem chauvinista para uma questão que sempre serviu de uma espécie de pedra fundamental em “conversas entre homens”, mas Murakami é assim mesmo, alguém que confronta o leitor, mas sem provocá-lo, até porque fica evidente, no decorrer da história, o quanto Kafuku era e continua sendo devotado à sua esposa e, claro, a referência à canção dos Beatles.

A melancolia impera, pois não só as lembranças de Kafuku sobre sua esposa doem profundamente em seu coração, como ele relata a amizade que encetou com Takatsuki, o último amante de sua esposa, após a morte dela, somente para descobrir que seu “concorrente” também era verdadeiramente apaixonado pela falecida. Nesse ponto da história, com a também silenciosa, mas sempre atenta Misaki servindo de câmara de eco para suas dúvidas, arrependimentos e culpa, começamos a entender que o que Murakami busca não é a exata compreensão do que levou a esposa a trair o marido, mas sim estudar o processo de autodescoberta de Kafuku, que de certa forma idealizava e continua idealizando seu relacionamento, mas começa a perceber, como um tema recorrente no breve conto, que o que ele mesmo diz sobre atores – que eles entram em um papel e, quando saem, não são exatamente os mesmos – vale também para a vida.

Murakami não chega a ser críptico na forma como escreve, mas, mantendo seu estilo razoavelmente reservado e de certa forma escudado por meias palavras, ele vai tragando o leitor para a vida de Kafuku e transmutando-a em elementos que guardam potenciais semelhanças com as vidas de muitas pessoas. Lidar com arrependimento, com dúvidas e com a culpa não é uma tarefa fácil, especialmente em uma situação consideravelmente sutil como a que ele apresenta, sem grandes eventos que marcam viradas ou estabelecem exatamente o porquê de seu protagonista sentir todo esse peso para além do adultério da esposa. É justamente em razão do razoável hermetismo do autor que eu estranhei o uso de algumas frases “fáceis”, do tipo de filosofia de botequim, pipocando algumas vezes, como é o caso de “em qualquer situação, conhecimento é melhor do que ignorância” ou “se temos a esperança de realmente enxergar outra pessoa, temos que começar olhando dentro de nós mesmos”, o que, para mim, quebrou diversos momentos de mergulho profundo na tristeza do protagonista. Não chega a ser algo que esvazia o conto de significados, porque ele está cheio deles, mas o torna um pouco mais “barato” e “simplista” do que ele vinha se propondo a ser.

Sherazade

Em uma fascinante história que, como o título deixa bem claro, é a versão de Murakami de As Mil e Uma Noites, uma mulher sem nome de 35 anos – secretamente batizada pelo protagonista como Sherazade – vai duas vezes por semana na cada de um jovem chamado Habara para levar compras, arrumar a geladeira e a cozinha e transar com ele. Depois do sexo, normalmente silencioso e consideravelmente burocrático, ainda que não sem paixão, ela lhe conta uma história como parte de um ritual a que os dois estão presos.

A mulher, segundo, ela, foi uma lampreia em outra vida e ela se lembra de ter sido assim, presa com ventosas em pedras no fundo do mar aguardando trutas passarem de forma que ela pudesse se alimentar. Ela também conta a história dela própria, quando adolescente, sobre suas invasões ao domicilio de um rapaz de gostava, somente para furtar – ou melhor, trocar – objetos que a faziam lembrar dele, também em um ritual semelhante ao de contar histórias para Habara e que, claro, assemelhasse com a imagem de vida vicariante do peixe sem mandíbula que ela diz ter sido.

Murakami empresta tons surreais à narrativa, ao prender Habara em sua casa como Luís Buñuel prende os convidados em O Anjo Exterminador. Mas o autor nipônico dá a entender que Habara ou é assim, extremamente recluso, ou não pode sair da casa por razões que estão acima dele, talvez prisão domiciliar até porque sua casa é chamada de Casa, com C maiúsculo. A aura de incerteza é um elemento que prende o leitor imediatamente, assim como a presença de Sherazade ali duas vezes por semana para abastecê-lo de comida, livros e DVDs, mas, também, para uma sessão de sexo seguido de histórias. Assim como Sherazade viveu a vida do garoto que gostava quando adolescente, Habara vive a vida que Sherazade conta a ele ou, pelo menos, depende profundamente daqueles momentos de intimidade com a mulher que, ironicamente, mal conhece.

A estrutura de história dentro da história dentro da história é ritmicamente trabalhada por Murakami, criando a interdependência de Habara e Sherazade. Um precisa das histórias tanto quanto o outro precisa contá-las, com o sexo sendo quase que como uma preliminar ao que realmente importa. Habara vê nas histórias de Sherazade sua fuga de sua vida comum ao passo que, para Sherazade, aquilo parece ser um elaborado processo de tentar reviver seu passado, de tentar resgatar sua vida de lampreia, de tentar fazer algo às escusas como a invasão de domicílio de duas décadas atrás, exatamente como ela transa como Habara às escusas, por ser casada. Há até elementos metalinguísticos que Murakami insere na narrativa e que não posso abordar aqui por em tese ser spoiler do fim que frustra na mesma medida em que deixa um sorriso no rosto do leitor que pegar o que o autor pretendeu fazer. Sherazade é um mestre mostrando o domínio que tem sobre a arte de contar histórias e de nos fazer ficar vidrados para vivê-las como lampreias à espreita.

Kino

Dos três contos aqui abordados, Kino é, sem dúvida alguma, o mais caracteristicamente algo escrito por Haruki Murakami de todos eles. O autor nipônico é pródigo em lidar com situações prosaicas e subvertê-las inesperadamente com alegorias e abordagens que flertam – ou mergulham diretamente – no sobrenatural, no místico e no puramente psicológico. Aqui, ele começa de maneira simples, lidando com um homem – Kino – que abre um bar depois de largar seu emprego como fabricante de sapatos esportivos por descobrir que sua esposa o estava traindo com seu melhor amigo do trabalho.

Mas a história não começa assim. O que vemos é um homem jovem, de cabeça raspada, habitualmente sentando-se no banco no lugar mais desconfortável do bar de Kino e pedindo uma certeza e, em seguida, um uísque duplo de qualidade normal, com a mesma quantidade de água e um pouco de gelo. Kino não sabe quem ele é e o que ele pretende, até que um evento com dois outros barulhentos fregueses acontece e seu nome é então revelado. Depois, como se Murakami estivesse escrevendo sua própria versão de Cheers, ele esquece o homem careca e passa a abordar a história de como Kino dormiu com uma de suas clientes, uma mulher que também constantemente frequentava seu bar, mas acompanhada de um homem de cavanhaque e que tem marcas de queimaduras de cigarro por todo o seu corpo, inclusive nas partes íntimas.

Essas duas histórias, então, desembocam em uma terceira, desta vez misteriosa, consideravelmente hermética, que faz com que Kino feche o bar e comece a viajar pelo Japão, sem permanecer muito tempo em um mesmo lugar e sempre mandando cartões postais indicando onde está – mas sem assinar seu nome ou escrever mensagens – para sua tia, dona do lugar que transformou em seu estabelecimento comercial, tudo a pedido do homem careca misterioso. Murakami, como em Drive My Car, faz seu protagonista – também um homem traído – ingressar em uma jornada de autoconhecimento que lhe exige muito, quase que uma inexistência completa, uma vida invisível representada pela caraterística nômade.

Kino é um conto estranho, mas intenso, por vezes lembrando de longe o excelente O Coração Delator, de Edgar Alan Poe, por outras não escondendo ser uma obra evidentemente “murakamiama”, se posso chamar assim. Há, diria, uma entrega menor – ou uma resolução que não realmente resolve muita coisa – que pode frustrar o leitor até certo ponto, especialmente aqueles que esperam algo mais na linha dos dois anteriores, mas Kino consegue prender, surpreender e até mesmo assustar o leitor com sua atmosfera cada vez mais tensa que olha para dentro de seu protagonista sem verdadeiramente oferecer respostas prontas, mas sim desafiando-nos a chegar a elas.

Drive My Car, Sherazade, Kino (Idem – Japão, 2014)
Contidos em: Homens Sem Mulheres (Onna no inai otokotachi)
Autor: Haruki Murakami
Editora original: Bungeishunjū
Data original de publicação: 18 de abril de 2014
Editora no Brasil: Editora Alfaguara
Data de publicação no Brasil: 1º de outubro de 2015
Tradução: Eunice Suenaga
Páginas: 242 (livro completo), 35 (Drive My Car) , 28 (Sherazade), e 35 (Kino)

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