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Crítica | Drive My Car

Ou as dificuldades de se compreender a própria subjetividade.

por Gabriel Zupiroli
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Em dado momento de Drive My Car, baseado em trinca de contos de Haruki Murakami, um detalhe muito sutil é colocado em cena: Misaki Watari, a nova motorista do ator e diretor de teatro Sr. Kafuku, pega a faixa da direita, enquanto dirige, para ultrapassar uma fila de carros à esquerda. Uma cena que, entrecortada por outros planos de direção cujo propósito é o da ambientação, pode parecer simples, despretensiosa, mas que suavemente realiza uma conexão com um momento anterior da trama, que desenha uma importante característica da relação de Kafuku com sua esposa. Tal cena, que pode passar despercebida, contém em si toda uma gama de propostas de encenação que caracteriza muito bem o que Ryusuke Hamaguchi aparenta fazer aqui. Isso porque, em última instância, Drive My Car é um filme feito sobretudo nos detalhes.

Acompanhando os dramas existenciais de Kafuku, o filme aborda suas conturbadas relações pessoais, profissionais e a interação com Watari, a motorista, para sermos breves. Trata-se de um drama, mas um que foge um pouco das características tradicionais ao se desvencilhar do apelo ao sentimento e focar sobretudo no desenvolvimento da linguagem. Isso porque esse conceito, linguagem, é algo predominante ao longo de toda a obra. A peça de teatro que reverbera ao fundo de toda a produção é composta de equipe e atores que falam japonês, coreano, mandarim e até a língua coreana de sinais. E é em meio a essa dinâmica que a grande encenação do filme se desenvolve: Hamaguchi parece propor acima de tudo um olhar sobre a interioridade do sujeito através da exterioridade de sua comunicação. Pois, de certa maneira, a comunicação está sempre em evidência, seja na interação entre Kafuku e os sujeitos ao seu redor, seja na dinâmica de grupo necessária para representação da peça.

Como em Roda do Destino, outro aclamado filme do diretor lançado em 2021, a encenação se dá sumariamente ao redor da representação e como esta se torna uma espécie de “espelho” para o texto e para as subjetividades em tela. Assim, o processo de dor e crise de Kafuku é sentido menos por uma verbalização de suas emoções, e muito mais pelos acontecimentos banais ao seu redor, como deixar que uma jovem mulher pilote o carro, elemento simbólico tão presente na trama. E falando nisso, os símbolos se apresentam como pontos cruciais para a constituição dessa proposta de encenação – sendo até verbalizado, em dado momento, sua presença.

Drive My Car, portanto, se constrói como uma íntima investigação acerca da impossibilidade de se comunicar a própria subjetividade, o que se resolve justamente com a utilização de objetos exteriores aos próprios sujeitos – e é aí que entra, por exemplo, justamente a figura do carro. Se a centralização de Kafuku naquele meio é constantemente colocada em cheque pelas personalidades que o cercam, é o escape nos momentos em que Watari dirige que aliviam sua condição de estranhamento. E é aqui que Hamaguchi mais brilha.

A cena mais potente de Drive My Car é, sem dúvida, uma longa sequência de direção. É nela que novamente a instância representativa surge e as certezas do protagonista acerca de seu passado (e de sua própria interioridade) são colocadas em cheque por justamente o outro vilanizado que, ao mesmo tempo, adquire uma instância de fixação por conta de Kafuku. No caso, o ator principal da peça, amigo de sua esposa. Em meio à direção de Watari, duas visões narrativas opostas são confrontadas no banco de trás e as camadas de conhecimento cedem para a narração da história, ou seja, para o plano da representação. Após a destruição de suas próprias ideias de certeza, Kafuku pela primeira vez muda para o banco da frente e permite a quebra de uma linha que, até então, separava a abertura para sua subjetividade de Watari, o grande outro que se aproxima cada vez mais de si. Com as mãos para fora, os cigarros e a alta velocidade, a divisão entre os dois sujeitos é destruída. Agora, podem se aproximar.

Os dois filmes que Hamaguchi dirige em 2021 possuem em sua veia uma vontade latente de jogar com a linguagem. Os planos extensos e focados nas faces soam até invasivos perante aquela passividade das personagens. O incômodo é sempre presente e intensificado. A dinâmica de interpretação sob as várias línguas parece apenas ecoar toda essa necessidade do diretor de trabalhar com essa instância. Até porque Hamaguchi sabe: filmar é a grande essência da narrativa cinematográfica. Enquadrar. E Drive My Car entende isso de maneira sumária. Todas as imagens propostas giram em torno apenas de um ponto, no final: compreender que antes de tudo é necessário compreender a si mesmo, não se afastar, para poder enfim morrer em paz.

Drive My Car (Doraibu mai kā) – Japão, 2021
Direção: Ryusuke Hamaguchi
Roteiro: Ryusuke Hamaguchi, Takamasa Oe (baseado em conto de Haruki Murakami)
Elenco: Hidetoshi Nishijima, Toko Miura, Masaki Okada, Reika Kirishima, Park Yu-rim, Jin Dae-yeon, Sonia Yuan, Ahn Hwi-tae, Perry Dizon, Satoko Abe, Hiroko Matsuda
Duração: 179 min.

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