A obra cinematográfica que se manifesta sob o título Duas Vezes João Liberada notabiliza-se pela sua incursão assertiva no campo espinhoso das contradições e dos paradoxos existenciais e artísticos, principalmente ao lidar com aspectos tão complexos como a representação (e aqui, até metalinguística) da comunidade LGBTQIAPN+. É bem verdade que o filme lida, a partir disso, com diversas ambiguidades de ordem conceitual e narrativa, assim como se confronta com diversos dilemas de representação histórica e de ética da imagem, e este gesto de confronto consciente e assumido talvez seja o seu maior e mais vívido destaque. A cineasta Paula Tomás Marques empreende uma arquitetura fílmica que se recusa a pactuar com as soluções simplistas – a própria forma do filme é uma nítida crítica a esse aspecto – ou os percursos narrativos convencionais – cito o experimentalismo e a ousadia narrativa como exemplo desses trajetos – e, preferindo mergulhar na complexidade multifacetada do seu próprio objeto. É a busca pela verdade da representação que se torna aqui a matéria-prima da sua investigação e o foco incessante de sua perscrutação formal.
Duas Vezes João Liberada narra o processo de filmagem de uma obra biográfica centrada na figura de Liberada, uma jovem do século XVIII que sofreu perseguição devido à sua não-conformidade de gênero. A trama se desenrola quando João, uma atriz proeminente do panorama português que interpreta Liberada, entra em choque com o diretor do filme. O conflito surge da discordância de João em relação ao modo como o legado de resistência de Liberada estava a ser representado. A tensão se aprofunda quando João é assombrada nos seus sonhos pelo espírito da figura histórica, estabelecendo uma profunda conexão entre as duas. Este mergulho na experiência de Liberada culmina com um evento dramático: um acidente inesperado atinge o diretor, forçando a atriz a assumir o comando da produção e a responsabilidade de honrar a verdadeira história de Liberada.
Primeiramente, a partir do contexto que vos dei, é imperioso reconhecer que a execução desta ambição notável não se processa de forma perfeita – vejo alguns excessos, principalmente em quebras de clima mal planejadas, para manter a atenção do espectador –, pois a perfeição é um fantasma que assombra apenas as obras menores que se contentam com a réplica e a superficialidade. Todavia, saliento que a abordagem da sexualidade, dos dilemas de gênero e da própria representação deste e daquele se constroem de forma muito satisfatória, demonstrando um controle autoral que confere ao filme uma sustentação estética e argumentativa de rara solidez. Paula Tomás Marques consegue, com uma inteligência formal acurada, trabalhar aspectos muito complicados que transcendem a mera transposição de uma história para a tela. Veja: ela estabelece um campo de batalha intelectual – pelo discurso sofisticado proposto – e sensorial — pela forma do filme – em que se digladiam os fantasmas da História e as urgências do presente, um espaço onde a imagem e o som se tornam instrumentos de debate e não meros veículos de entretenimento.
Entre os eixos temáticos que sustentam esta estrutura crítica, sobressai a questão de gênero, tratada não apenas enquanto tema biográfico da personagem Liberada, uma dissidente de gênero perseguida pela Inquisição, mas também enquanto problema da sua reencenação e da própria identidade da atriz João, interpretada pela brilhante co-roteirista June João. A performance de June João, que se desdobra nas duas identidades, opera como o nervo central da ambiguidade proposta pela obra, questionando os limites do corpo e da sua inscrição no tempo. Paralelamente, a questão histórica é profundamente debatida através da problematização da reconstrução de um passado incerto e apagado, mormente quando se trata de narrativas queer e dissidentes cuja autodenominação se perdeu nas brumas dos arquivos inquisitoriais.
Neste ponto, a arquitetura do filme é inexoravelmente marcada pela questão da metalinguagem. O dispositivo do cinema dentro do cinema não é empregado como um truque, mas como o motor primário da reflexão, permitindo que o filme se olhe no espelho e disserte sobre a sua própria impossibilidade e necessidade. A questão do cinema, enquanto indústria, arte e método de escrita da História, é confrontada diretamente através da personagem do realizador ficcional Diogo, interpretado por André Tecedeiro, cuja visão autoritária e patriarcal da narrativa é subitamente paralisada, num gesto que é quase um aforismo visual sobre o colapso do controle narrativo tradicional. A produção se converte num palco de disputas, no qual o que está em jogo é o próprio direito à enunciação e à autoria da história.
Deste conflito emerge a complexidade da questão da representação. Não se trata apenas de representar uma figura histórica, mas de entender quem tem o direito de a representar, como a deve fazer e que responsabilidades éticas advêm desse ato. O filme, sob a ótica crítica de Paula Tomás Marques e por intermédio da sensibilidade de June João, clama por um protagonismo de qualidade, pensado junto das pessoas trans e não meramente sobre elas. O filme reconhece esta efemeridade ao abraçar a tensão permanente entre a questão do parecer ser e do ser de verdade. Esta dicotomia ontológica e artística constitui o cerne da narrativa e da sua ressonância poética.
A sustentação formal desta empreitada crítica reside na maneira como a Diretora Paula Tomás Marques utiliza do experimentalismo de uma filmografia mais experimental. O trabalho da cinematografia, a cargo de Fresco Mafalda, utiliza a textura granular do 16mm para evocar a memória e a materialidade da imagem, conferindo à narrativa uma vitalidade palpável. Este experimentalismo não é uma fuga à narrativa, mas sim o seu alicerce metodológico. Permite a construção de um filme realmente sustentável, no sentido de ser uma obra que se sustenta a si própria através da coerência entre forma e conteúdo, resistindo à tentação da concessão fácil ou da didatização.
O filme atinge o seu cume ao conciliar justamente essa ideia mais experimental de uma filmografia mais experimental mesmo com a necessidade premente de abordar temas de profundo relevo social e histórico. É na intersecção do rigor analítico com a ousadia formal que Duas Vezes João Liberada se afirma como um exemplar notável do cinema contemporâneo que se faz pergunta e resposta simultaneamente. É uma obra que não teme o seu próprio dilema, sabendo que a única forma de o ultrapassar é atravessá-lo com a coragem da forma e a acuidade do pensamento.
Duas Vezes João Liberada (Idem) – Portugal, 2025
Direção: Paula Tomás Marques
Roteiro: June João, Paula Tomás Marques
Elenco: June João, André Tecedeiro, Jenny Larrue Eloísa D‘Ascensão, Tiago Aires Lêdo, Caio Amado, Alice Azevedo, Helena Estrela, Paula Tomás Marques, Marcelo Tavares
Duração: 70 min.