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Crítica | Dunkirk

por Marcelo Sobrinho
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Quando os soldados de Steven Spielberg vão se aproximando da praia de Omaha em seus botes Higgins, no começo de O Resgate do Soldado Ryan, o diretor norte-americano não esconde de seu espectador a carga dramática que o momento envolvia. A mão do capitão John Miller (Tom Hanks) tremula ao pegar seu cantil e, em seguida, um de seus combatentes vomita dentro da embarcação. Tudo o que Spielberg realiza depois disso, na extraordinária introdução de seu filme, é colocado em função de reconstituir a desorientação provocada por uma das batalhas mais sangrentas e caóticas da Segunda Grande Guerra. Ele leva a câmera às mãos, a coloca ao nível da água, mergulha com ela e a abaixa até a areia da praia, impedindo que o espectador veja com clareza o que ocorre no campo de batalha. O público é imerso na guerra como nunca se fizera antes. Não somente em seus matizes sangrentos e seus ruídos ensurdecedores. Spielberg arrasta seu público para o caos absoluto e para a catástrofe emocional do conflito.

É curioso pensar que Dunkirk, o mais novo longa-metragem de Christopher Nolan, seja um dos grandes favoritos ao Oscar 2018 levando consigo exatamente essa mesma alcunha – a de filme de imersão. Nolan não é exatamente um diretor que eu aprecie. Toda a habilidade técnica do diretor britânico (não há como negar sua proficiência em filmar) acaba encobrindo a falta de empatia e de emoção em sua construção de personagens. Exceção se faça ao Coringa, de Batman: O Cavaleiro das Trevas, mas muitos méritos sejam dados também à atuação de Heath Ledger. A questão primordial é que em A Origem, por exemplo, Nolan trabalha com um roteiro escrito do zero, sem nenhuma base em uma qualquer história real preliminarmente dramática. Sua frieza ao tratar de dramas humanos, nesse caso, impacta menos no conjunto da obra. Já em Dunkirk, infelizmente, ele escolheu muito mal onde cometer o mesmo erro.

Sim, é óbvio que o filme, indicado a oito estatuetas, é primoroso em todos os quesitos técnicos. Nolan usa quase tudo o que a gramática do gênero lhe oferece. Quando é necessário levar a câmera às mãos, ele leva. Quando é necessário realizar travellings, fazer movimentos de grua ou spins nas maravilhosas tomadas aéreas, ele também não economiza. Nolan fecha e abre seus planos de forma belíssima. Não há como negar – Dunkirk é uma aula de técnica de direção de cinema. A direção de arte, utilizando inclusive caças dos tempos da guerra, não deixa por menos e o mesmo se pode dizer do lindo trabalho fotográfico de Hoyte von Hoyteama. Os efeitos sonoros se somam à trilha de Hans Zimmer para criar tensão. A música do compositor alemão não cria melodias heroicas e sim texturas, fabricadas por células que se repetem obsessivamente e em um constante acelerando (há muitas pessoas confundindo com o termo musical crescendo, que se refere ao aumento de intensidade de som e não de seu andamento). Por vezes, Hans Zimmer parece recriar sons de sirenes, motores e até hélices. Trilha e efeitos sonoros estão sempre cruzando a fronteira que os separa, unificando o trabalho sonoplástico do filme.

Dito tudo isso e feito o devido reconhecimento ao capricho do diretor e sua equipe com a construção técnica do filme, é preciso que eu declare sem meias palavras: não gosto de Dunkirk. Mais do que isso, preocupa-me sinceramente a sua aclamação por alguns críticos baseando-se tão somente em sua superabundância sensorial. Christopher Nolan decidiu lançá-lo nos cinemas usando a tecnologia IMAX, com a proposta de uma imersão autêntica do público na realidade do combate. Mas duvido muito que o resultado obtido por ele tenha sido realmente esse. Como pode um filme com essa pretensão ignorar aspectos tão precípuos de uma guerra? Em primeiro lugar, todos os personagens de Nolan são genéricos e insossos, à exceção possível do piloto da RAF interpretado por Tom Hardy. Conhecer ou não os seus nomes é algo menor perto da lacuna que o roteiro deixa sobre suas personalidades, histórias e motivações. O filme não se compõe de seres humanos tornados soldados. Ele compõe-se de personagens meramente funcionais dentro de sua mecânica indiferente ao sofrimento humano envolvido.

Há quem possa argumentar que a intenção de Nolan era mesmo a de apostar na visão coletiva da guerra e no drama de toda a nação inglesa. Primeiro problema dessa ideia: o que forma uma nação senão homens e mulheres unidos em torno de um sentimento comum? Como se identificar com o drama vivido pela Inglaterra nas praias de Dunquerque se não nos identificamos com nenhum dos soldados ingleses à espera de uma salvação? Basta que sejamos mais cuidadosos para percebermos que o próprio roteiro acusa essa carência, já que tenta dignificar como herói de guerra o menino que sofreu um trauma na cabeça dentro de um barco civil. O problema aqui é que Dunkirk nega ao personagem qualquer vestígio de historicidade e de humanidade palpável. Como aceitá-lo como herói se seu desenvolvimento tão débil não passou nem próximo disso? Aparecer em um jornal como herói de guerra, além de uma contradição narrativa, acaba deixando exposta a maior ferida do filme – a inconsistência de seu roteiro, que juramenta algo que não consegue cumprir e por necessidade óbvia.

Na realidade, o filme já se trai na primeira cena, que se inicia sob o ponto de vista de um jovem soldado que apenas corre pelas ruas para depois ser diluído pela indiferença do roteiro. Logo em seus primeiros minutos, Dunkirk reconhece que é preciso encontrar referência em algum personagem. Mas, paradoxalmente, teima em construir seu distanciamento pré-calculado já nas cenas seguintes. Por que, então, dar ênfase inicial àquele soldado se nada será dito sobre ele? E é tentando esconder a superficialidade do roteiro que a equipe de edição picota a montagem em uma narrativa não linear, em que o mesmo acontecimento é mostrado sob diferentes perspectivas. Para além de um exercício bem executado, deveríamos nos questionar o que o filme ganha, de fato, com essa montagem espicaçada. O que me parece é que Dunkirk utiliza o recurso apenas para mascarar a insuficiência do roteiro, desafiando o espectador (como em um jogo que nada tem a ver com arte) a juntar as partes e levar como prêmio a compreensão do todo. Uma motivação, no mínimo, questionável. Mais uma vez, o filme de Nolan fabrica demais e sente de menos.

Tudo é tão calculado em seu novo longa-metragem que nem parece estarmos diante de um cenário de guerra. Não se sente o drama do soldado. Nem físico nem emocional. O britânico constrói uma guerra asséptica, organizada e que elimina noções básicas como fome, sede, frio, dor e desespero. Nolan quer que a Inglaterra sofra sem que sofram seus soldados. Quer que seu país natal triunfe sem que seus soldados lutem por isso. Dunkirk, no balanço geral, é uma superestrutura cinematográfica de esqueleto frágil. Tantos recursos técnicos não se sustentam em bases tão pouco sólidas. Por isso, para mim, ele é tudo, menos um filme de imersão. Afinal, no que ele nos imerge? Em uma guerra de sensações? Quando foi que trocamos nossa capacidade de imergir genuinamente na dor do outro por um bombardeio sonoro o suficiente para nos fazer sentir nos ouvidos aquilo que nosso espírito anestesiado desaprendeu a fazer?

A evacuação de Dunquerque, em 1940, foi uma operação grandiosa. Mas sua grandeza maior é, sem dúvidas, a humana. Vida, esperança e destino, contidos na alma de cada um dos milhares de combatentes, foram os valores humanitários mais importantes que a Operação Dínamo resgatou naqueles dias. O espectador percebe que essa história contém algo maior. Um sentido maior que Christopher Nolan não foi capaz de imprimir em sua obra. Um filme de guerra cujo impacto se esgota rapidamente após cessarem tantos sons que nos dizem tão pouco.

Dunkirk — Reino Unido/Países Baixos/França/EUA, 2017
Direção:
Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Fionn Whitehead, Damien Bonnard, Aneurin Barnard, Lee Armstrong, Barry Keoghan, Mark Rylance, Tom Hardy, Jack Lowden, James D’Arcy, Cillian Murphy,  Harry Styles, Kenneth Branagh
Duração: 106 min.

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