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Crítica | Dúvida (2008)

por Marcelo Sobrinho
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Se há uma coisa que me parece clara ao assistir Dúvida é que se trata de um filme determinado a frustrar as expectativas dos espectadores mais ingênuos. O longa-metragem, dirigido por John Patrick Shanley e protagonizado por Philip Seymour Hoffman e Meryl Streep, já se inicia de forma dúbia e enigmática, com o sermão do padre Flynn parecendo insinuar a existência de uma angústia pessoal que jamais se revela de todo. O protagonista já transmite seu recado ao espectador nos primeiros minutos de projeção – o quanto daquele brilhante discurso inicial não falaria dele mesmo? Quais incertezas povoariam a intimidade do padre (antes de mais nada, um homem mortal e pecador)? Aqueles que tentam assistir a Dúvida buscando solucionar o caso do padre acusado de seduzir um menino (como um leitor desavisado tentado decifrar o caso de traição de Capitu) não encontrarão nada a não ser as suas próprias dúvidas e confusões.

A obra não dá mesmo nenhum fechamento ao caso, por mais que nos sintamos tentados a obter respostas tal como a irmã James (Amy Adams), que parece representar o público desorientado e constrito entre as evidências da acusação da irmã Aloysius e o a auto-defesa do acusado. A própria complexidade dos personagens faz o público oscilar entre a afeição e a desconfiança em relação à postura que ambos assumem. Se, na primeira cena, a rigidez da personagem de Streep dando bofetadas nos meninos que dormiam durante missa desperta certo desconforto no público, mais à frente, a câmera que registra o pároco em um plano aberto bastante suspeito (a escolha do diretor não é nada gratuita), guardando uma roupa no armário do menino, plantará a famigerada dúvida sobre as razões da intransigente freira. Interessante também é como os dois personagens são apresentados ao público – ele em um tradicional e inocente primeiro plano e ela, em um funesto plano de nuca. É claro que Dúvida não tardará a frustrar os mais incautos subvertendo sem parar o modo como os personagens são lidos pela câmera de Shanley.

Sua direção aposta na qualidade do fabuloso quarteto de atores, completado por Viola Davis como a mãe do menino supostamente molestado. Não faltam movimentos de câmera lentos durante os sermões do padre, registrando a firmeza e a peremptoriedade de suas palavras. Ocasionalmente, Shanley se vale dos planos holandeses para dar relevo a alguns momentos de maior tensão, como na cena em que a irmã James pergunta ao padre Flynn se ele havia feito algo de errado. Mas o grande destaque da direção fica mesmo por conta do campo/contracampo tão bem utilizado no último embate entre a irmã e o padre. O diretor empreende um verdadeiro jogo de gato e rato, em que a tensão crescente é obtida tanto pelos planos cada vez mais fechados no rosto furioso de Flynn, como também pela veemência de suas respostas e pela participação sonoplástica do entorno (o piscar da lâmpada, o choque do telefone com a mesa e o trovão do lado de fora da sala). E o mais interessante: a tensão transborda da tela para o espectador e o constrange pelo fato de não haver qualquer nova descoberta sobre o caso e, portanto, qualquer repouso para tamanha inquietação.

Acho admirável que o filme traga à baila um tema tão sensível e que poderia de antemão gerar uma sentença. Os casos comprovados de pedofilia na Igreja Católica são numerosos e não seria nenhuma surpresa que o caso do padre Flynn se confirmasse apenas como mais um deles. Mas, na contramão dessa ideia inicial, é importante notar que Dúvida trata de um padre acusado desse crime sem construí-lo sob qualquer tipologia vilanesca. Só temos dúvidas sobre a sua culpa pois ele se revela inteligente, sereno e afetuoso em muitos momentos. O filme me parece oferecer uma lição bastante valiosa e que transcende a questão da pedofilia entre membros da Igreja – a importância da moderação no processo de leitura do mundo. Mesmo diante das causas mais inflamadas, que pareçam ter as respostas mais óbvias, devemos ter prudência. O sermão do próprio padre Flynn sobre a fofoca diz muito sobre isso. A defesa imponderada de uma ideia é capaz de causar estragos incomensuráveis e o filme de John Patrick Shanley sabe que não há forma mais contundente de refletir sobre isso do que através do poder da imagem. Por isso mesmo, as plumas voando desordenadamente pela janela são uma metáfora tão insubstituível.

A cruzada da irmã Aloysius para afastar o controverso padre do colégio só revela como o excesso de certezas produz uma confusão permanente entre verdade e mentira. Justiça e injustiça. Antes de seu único choro, a personagem de Meryl Streep revela que havia mentido para atingir seu objetivo. Fica uma pesada reflexão: se em nome da justiça e da verdade, até a mentira serve de instrumento, o que estamos buscando afinal de contas? Sermos capazes de ler a realidade com alguma perícia ou exigirmos que ela se curve às nossas ideias pré-concebidas? Com uma fotografia sóbria e outonal e muitos diálogos cortantes e inspiradíssimos, Dúvida nos deixa com a pulga atrás da orelha não somente em relação ao caso do padre Flynn, mas em relação a nós mesmos e às certezas que tentamos acumular para nos sentirmos mais seguros em um mundo tão incerto. Afinal, é a todos nós que o padre dirige a questão: o que fazemos quando temos dúvida?

Dúvida (Doubt) – EUA, 2008
Diretor: John Patrick Shanley
Roteiro: John Patrick Shanley
Elenco: Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis, Joseph Foster
Duração: 105 minutos.

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