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Crítica | E Não Havia Mais Neve…

por Luiz Santiago
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Uma das formas mais eficientes de dominação e opressão de um povo sobre outro está no apagamento, reescrita ou readequação da identidade cultural do dominado. Esse é um tipo de estratégia que encontramos em todos os impérios ultramarinos construídos durante a Idade Moderna, e que vemos até hoje perpetrado por grupos economicamente dominantes, através da reafirmação de valores e modelos tidos como “belos” e “ideais”, principalmente nas propagandas.

Neste curta-metragem de Ababacar Samb-Makharam, datado de 1966, temos essa questão da identidade colocada em discussão, tomando como exemplo um jovem senegalês que ganhou uma bolsa para estudar na França e que, após um tempo na metrópole, volta ao seu país natal e estranha o modo de vida de seus familiares, como se não pertencesse mais àquele lugar.

A utilização da narração aqui tem um papel bastante irônico, porque atravessa o filme fazendo perguntas ao protagonista, ao mesmo tempo que nos transmite alguns de seus pensamentos. A cena do almoço, onde a família come em uma tigela de madeira pegando o arroz e o peixe com as mãos, é um dos momentos mais fortes dessa dualidade entre ironia e denúncia: a tradição de comer com as mãos vs. o recém-chegado da França comendo com uma colher.

O choque de identidade para esse jovem nativo que retorna à terra vai ganhando ainda mais peso à medida que ele começa a pensar sobre o seu futuro e reintegrar-se a lugares e pessoas. A direção observa tudo com um olhar de visitante, colocando o espectador no lugar do protagonista que precisa reconectar-se à sua própria identidade nativa… ou — e esta é uma possibilidade que se tornaria fato no Senegal do futuro, tema satirizado por Ousmane Sembène em Xala, por exemplo — tornar-se a primeira geração que assimilou coisas demais dos franceses e vê certos costumes e interesses nativos como atrasados, inúteis, ou tradicionais demais para o seu gosto.

O final de E Não Havia Mais Neve… traz um diálogo que fecha a discussão num misto de crítica e autocrítica, com uma conversa que retoma o assunto a respeito do interesse amoroso (um pouco antes, a sequência na praia intensifica essa dualidade de olhar) e também a representação no corpo daquilo que mais atrai o protagonista, que no fim das contas é o arquétipo de uma geração. Aqui, ele e uma jovem conversam sobre “lugares distantes” e falam sobre a neve… “por que não existe uma neve preta?“. Esta é a pergunta que o diretor Ababacar Samb-Makharam nos deixa, fechando de maneira forte e intrigante essa pequena obra sobre percepções e identidades, sejam elas geográficas, pessoais ou ideológicas.

E Não Havia Mais Neve… (Et la neige n’était plus) — Senegal, 1966
Direção: Ababacar Samb-Makharam
Roteiro: Ababacar Samb-Makharam, Jacques Janvier
Elenco: Thomas Coulibaly, Ndéye Diarra, Fatoumata Sankon, Merry Sané, Modou Sène
Duração: 22 min.

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