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Crítica | E No Final a Morte, de Agatha Christie

Rastro de sangue no Egito Antigo.

por Luiz Santiago
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E No Final a Morte é um dos romances mais diferentões de Agatha Christie, o único dentre todos os seus livros policiais que não se passa no século XX. Na verdade, a ação ocorre muito tempo atrás, no Egito Antigo, mais especificamente na cidade de Tebas, por volta de 2000 a.C. A já conhecida apreciação da autora pelo Egito e por História Antiga tornou-se mais forte quando acompanhou o marido arqueólogo, Sir Max Mallowan, em uma expedição ao Oriente Médio. A sugestão para um livro ambientado no passado veio de Stephen Glanville, um egiptólogo amigo da família, que acabou sendo um grande orientador de Agatha Christie nessa temática, emprestando livros, apontando inconveniências históricas e indicando muitas questões comportamentais que fizessem maior sentido para aquele período. Na introdução, a autora deixa bastante claro a intenção do volume e a origem de suas ideias para ele:

A ação deste livro tem lugar na margem oeste do Nilo, em Tebas, no Egito, por volta do ano 2000 a. C. Tanto o lugar quanto a época são incidentais para a história. Qualquer outro tempo ou lugar teriam servido da mesma maneira; todavia, a inspiração de ambos, personagens e trama, derivou-se de duas ou três cartas egípcias da XI Dinastia, encontradas há vinte anos pela Expedição Egípcia do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, num túmulo de pedra oposto a Luxor, e traduzidas pelo professor (então Sr.) Battiscombe Gunn, no Boletim do Museu.

De fato, guardadas as particularidades culturais e históricas próprias do Egito Antigo, aquilo que vemos se passar aqui poderia facilmente ser encaixado em qualquer outro espaço geográfico ou temporalidade. As ambições humanas, as complexas relações interpessoais, os interesses distintos dentro de uma mesma casa e até uma aparência mística em torno dos inúmeros assassinatos que acontecem (é um dos livros da autora em que mais morre gente e, ao menos no trato desse aspecto místico, me fez lembrar de O Cavalo Amarelo) podem ser imaginados em muitos outros romances de mistério. A esse respeito, vale dizer que o volume é a primeira ficção abertamente escrita como uma mistura entre ficção histórica e romance policial, com seu enredo baseado nos Papiros de Heqanakht, um conjunto de cartas que datam do início do Império Médio (2050 a.C. — 1710 a.C.), encontrados no complexo do túmulo do vizir Ipi.

Esses papiros são relatos escritos por Heqanakht (ou em seu nome), um sacerdote de Ka (representação simbólica da alma) em favor do vizir Ipi. Afastado de sua família, aparentemente por obrigações na Necrópole, Heqanakht  escreveu cartas onde encontramos informações raras e valiosas sobre a vida dos membros de uma classe levemente abastada do Egito, durante esse período, e também sobre a contabilidade de grandes propriedades, sendo este um dos ramos que a autora desenvolve bem, já que o patriarca da família, Imhotep, é dono de muitas terras e a questão de sua administração é um dos pontos centrais na primeira parte do livro, fazendo com que haja brigas entre os irmãos Yahmose, Ipi e Sobek pela sociedade com o pai e pelo poder de dar ordens ou fechar negócios.

A Rainha do Crime cria um cenário de muitas mortes ao mesmo tempo em que reflete sobre as mudanças da vida, começando com a chegada da jovem viúva Renisenb à sua antiga casa, pouco tempo depois da morte do marido. A ambientação estabelecida para  a grande propriedade de Imhotep e o sentimento das pessoas que ali habitam é contagiante, além de ser historicamente muito fiel àquilo que temos documentado da vida no Antigo Egito. Me lembrou, inclusive, o trabalho da autora na excelente peça Akhenaton (1973). Mas a paz inicial desse lugar, o sentimento bucólico e de vida farta e interessante é rapidamente substituído por uma realidade de brigas cotidianas e muito sangue, iniciado com a chegada da nova concubina de Imhotep, a jovem, bela e provocativa Nofret, vinda do Norte do país.

Uma fala de Hori, o escriba da família, dá uma pista muito importante para o leitor, ainda no começo do livro, a respeito do caminho que a gente pode tomar para fazer uma leitura de situações e até mesmo para entender todo o clima dessa propriedade — algo que ajudará a construir o perfil do assassino, por sinal. Quando Renisenb expõe a sua felicidade por ver “tudo exatamente igual como deixara” e por “se sentir em casa novamente“, Hori diz para ela que esta é uma percepção falsa. As pessoas não são as mesmas com o passar do tempo, e seus interesses ou formas de interagir com os outros também mudam. Essa é uma chave valiosa para o público ver as mudanças pelas quais os indivíduos passam, ao longo do tempo, e como enxergam os assassinatos nessa grande propriedade.

A autora dá a devida atenção a todos os personagens, fazendo com que tenham voz e com que apareçam o suficiente para que o leitor enxergue uma possibilidade de assassinato vinda dessa pessoa. E diferente de alguns de seus livros, não existe sequer uma mínima confusão sobre quem é quem. Como a história se passa na Antiguidade, não temos sobrenomes. Encontramos apenas o primeiro nome dos indivíduos, e eles não são tratados por apelidos, ou seja, temos vivo na mente cada um dos habitantes da casa, suas personalidades e os possíveis motivos para que cometam (ou não) os assassinatos que aqui ocorrem. A preparação até a revelação do assassino é uma das melhores que temos na literatura de Agatha Christie, porque ela não toma atalhos, não acrescenta novos personagens e não cria variações de problemas quando já existe um grande deles para ser resolvido.

Existem algumas poucas coisas aqui que me incomodaram, como repetições ligadas a Hori ou o leve direcionamento dado ao romance nas derradeiras páginas. Este último elemento, porém, é algo que consigo ver como uma escolha compreensível e que faz sentido para a história. Aliás, é uma escolha romântica que a autora consegue guiar de maneira elogiável dentro do próprio romance, e convenhamos que não é algo que ela conseguiu fazer de maneira positiva todas as vezes, especialmente nos finais dos livros. A reflexão sobre a vida e a importância da morte em uma sociedade que se organizava inteiramente em torno dessa questão é o chamariz definitivo da obra, que é cheia de personagens bem escritos e com alinhamentos bem diferentes. O leitor se irrita com alguns e se encanta com outros, passando a temer ou desejar, a cada capítulo (aqui organizados com base no calendário agrícola egípcio) que  a morte chegue para ele. Um enredo aplaudível e que faz jus ao período histórico no qual foi ambientado. Infelizmente, um dos romances menos conhecidos da Rainha do Crime.

E No Final a Morte (Death Comes as the End) — Reino Unido, outubro de 1944
Autora: Agatha Christie
Editora original: Dodd, Mead and Company
Edição lida para esta crítica: Nova Fronteira, 1979
Tradução: Barbara Heliodora
256 páginas

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