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Crítica | …E o Vento Levou

por Ritter Fan
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Havia uma terra de Cavaleiros e Campos de Algodão chamada de Velho Sul. Aqui, nesse belo mundo, o Galanteio fez sua última aparição. Aqui, foi a última vez que se viu Cavaleiros e suas Belas Damas, Mestre e Escravo. Procure-o apenas em livros, pois não é mais do que um sonho lembrado, uma Civilização levada pelo vento. (trad. livre)

A frase de abertura do filme, inserida por escrito, é essencial para que o espectador saiba o que esperar da experiência de se assistir quase quatro horas de um belo passeio pelo chamado Velho Sul. Repare no uso das palavras, nas letras maiúsculas em algumas delas. A autora da obra original, Margaret Mitchell, sulista de Atlanta, que a escreveu em 1936, fez muito mais um conto de fadas do que algo próximo à realidade. O saudoso crítico Roger Ebert faz até uma comparação interessante em sua crítica, ao afirmar que esse Velho Sul do filme é equiparável a Camelot, das lendas arturianas.

E ele, como de costume, tem razão. E essa visão é necessária, especialmente hoje em dia, para que  …E o Vento Levou não seja literalmente odiado por todos por sua visão floreada da época que retrata – antes, durante e depois da Guerra Civil americana – com brancos benevolentes e negros que, apesar de serem escravos, são retratados como felizes com sua condição, bem tratados por seus “donos” e realmente dedicados, de coração aberto, a seus amos. A comparação com o racismo direto do controverso O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, nesse ponto, é quase inevitável, mas a diferença é que, ao emprestar essa aura de conto de fadas, Victor Fleming (o único diretor creditado, que sucedeu George Cukor depois de ele ser demitido e que foi substituído brevemente por Sam Wood, depois que Fleming teve um colapso) enverniza a situação de maneira que ela se torna, digamos, suportável, mesmo pela lente da polícia do politicamente correta dos dias atuais.

Mas notem que o preconceito está lá sim e mesmo à época ele foi salientado e discutido. Não se faz uma obra exaltando o Velho Sul e transformando os escravos quase que em bichinhos de estimação, sem algum tipo de crítica feroz às escolhas do roteiro que, na verdade, refletem com bastante fidelidade a visão de Margaret Mitchell.

Dito isso, porém, …E o Vento Levou é inegavelmente um clássico hollywoodiano como poucos, daqueles que deslumbram pelos detalhes cenográficos, pelo figurino, atuações, fotografia e trilha sonora. Um filme que, esse sim, é fruto de uma época de produção da Sétima Arte que foi “levada pelo vento” e que nunca mais voltaremos a ver.

O coração de toda a projeção é Scarlett O’Hara, vivida por Vivien Leigh, depois do notório processo de seleção que levou à entrevistas com nada menos do que 1.400 candidatas, em um papel feminino fortíssimo para a época e mesmo para hoje em dia. Sua transformação de menininha mimada, que manipula seus pretendentes em um jogo de poder ainda sem malefícios para uma guerreira que faz literalmente de tudo para não perder Tara, a fazenda de algodão de sua família arrasada pela Guerra Civil, para uma mulher de negócios brilhante, inescrupulosa mesmo, para mãe, para mulher apaixonada, para uma trágica sombra do que era, mas que nunca perderá a esperança. Trata-se, sem dúvida, de um dos mais complexos papeis do Cinema e um que merece nota.

Scarlett O’Hara, que é a única que não envelhece fisicamente ao longo da projeção, que cobre um longo período de tempo, quase como uma forma de personificar visualmente a força da personagem,  ganha um arco de desenvolvimento invejável. Aliás, o único que verdadeiramente pode ser chamado assim. Quando a vemos pela primeira vez, ela controlas os rapazes à sua volta com sua bela aparência, deslumbrantes vestidos com um toque risqué e com diálogos de duplo sentido – aliás, uma marca desse filme – que encanta a todos, inclusive os espectadores. E, por mais que fique evidente sua qualidade manipuladora logo nos primeiros minutos, nossa identificação com ela é quase imediata, apesar de ela ser esnobe e, em última análise, traiçoeira. É o encanto de Vivien Leigh que captura a imaginação e estabelece um forte rapport com a audiência, de maneira que mergulhamos em sua psiquê, nos irritemos com o que ela faz, mas a perdoemos em seguida, tão facilmente quanto as piscadelas que ela dá e a vozinha de menina-moça que ela usa sempre com quem estiver zangado com ela.

E, olhando com uma visão ainda mais abrangente, é muito interessante notar que outro grande papel da atriz foi em Uma Rua Chamada Desejo, dirigido por Elia Kazan. Nesse outro filme, ela faz o papel de uma espécie de Scarlett O’Hara com menos fibra, mais realista, esmagada pelas circunstâncias do desaparecimento de um estilo de vida. É quase – e claro, estou aqui apenas extrapolando – que um continuação de …E o Vento Levou, castigando ainda mais a já sofrida personagem de Leigh.

Mas Vivien Leigh não está sozinha “no palco”. Sua cara-metade, Rhett Butler, vivido pelo carismático Clark Gable, oferece uma contrapartida crível para Scarlett. Ele é bem mais velho e entende exatamente, sem sombra de dúvidas, quem é a moça desde a primeira vez que a vemos em uma linda sequência em que a câmera o foca de cima, do ponto de vista de Scarlett no topo de uma escadaria, de maneira que entendamos como ela se sente superior a ele e como ele sabe disso e, com seu sorriso, deixa entrever que ele também sabe que a realidade é bem diferente. Rhett e Scarlett formam o único casal possível para os dois. Ele é um homem da vida, um comerciante milionário que vive do jeito que quer, sem barreiras sociais. É, talvez, o único personagem não unidimensional que não tenha um pingo de preconceito, seja racial, seja social, seja religioso. E sua transformação em pai devoto – em substituição à mulher que tem, mas que não pode ter plenamente – é bonita, mas com uma camada imperceptível de dor ao fundo, dor essa que sob e extravasa como um vulcão quando a tragédia se abate sobre o casal em momentos capazes de fazer qualquer marmanjo deixar “um cisco entrar no olho”.

Os demais personagens aristocratas são mais simples. Estou falando, aqui, especialmente de Ashley Wilkes, vivido por Leslie Howard e Melanie Hamilton, vivida por Olivia de Havilland. Ashley é o cavaleiro branco de lenda por quem Scarlett acha que é apaixonada. Todos os seus casamentos fracassam simplesmente porque ela insiste em ter algo que não pode nunca ter e sofre por isso. Mas não é um sofrimento de amor, e sim um sofrimento por teimosia e que, mesmo quando ela descobre que é apaixonada por Rhett – e nunca foi por mais ninguém – ainda insiste em seu ideal não realizado. E Howard vive Ashley justamente dessa maneira, como o homem que, casado com Melanie, sabe que não pode ter Scarlett e sofre por não saber exatamente o que sente por uma e por outra. Apenas sua moral o impede de “pular a cerca”. E Melanie, bem, Melanie é a sulista aristocrata perfeita: bonita, inocente, pura de coração, que ama a tudo e a todos sem restrições, sem qualquer vestígio de preconceito. É a personagem mais rasa de toda a obra, quase um anjo sem asas que conecta as histórias. Seu aspecto angelical é tamanho que particularmente sempre tive dificuldades de sofrer por sua morte, um dos poucos momentos da obra que falham em transpor emoções, talvez por acontecer em meio a um turbilhão de outras tragédias.

E, apesar de toda a visão romântica do Velho Sul que abordei no começo da presente crítica, é curioso notar que, para 1939, esse é o filme que até então deu mais destaque para personagens negras. Sim, são duas escravas – mas de casa, não do campo – que cuidam da família O’Hara: Mammy, vivvida por Hattie McDaniel (que merecidamente levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante no lugar de Olivia de Havilland, que também concorreu nessa categoria) e Prissy (Butterfly McQueen). Mammy é a matrona, a guardiã da família, que faz tudo por eles, especialmente, depois, por Scarlett, provavelmente sua preferida. Ela é quem tem a visão de conjunto da situação e funciona, constantemente, como a voz da razão. Prissy é, por outro lado, uma jovem com voz escandalosa inesquecível que tem um quê de rebeldia, de insatisfação, de irrequietude que a coloca, apesar do pouco destaque na narrativa, em uma posição de choque frontal com o status quo cívico da época, em uma bem-vinda (mas discreta) estocada na aristocracia branca.

Aliás, o roteiro trabalha com um tema central de maneira contundente, especialmente considerando o quão imerso estava Hollywood no Código de Produção, extremamente restritivo sobre o que poderia ser inserido em um filme: o sexo. Scarlett usa o sexo – ou a promessa dele – para conseguir o que quer. Desde a em tese inocente manipulação de seus pretendentes no começo, passando pela explícita “venda de seu corpo” em casamento para manter Tara e, depois, em fantástico diálogo pela boca de Rhett Butler, o sexo é onipresente em um roteiro esperto que economiza no didatismo e investe em palavras bem colocadas ao longo de toda a projeção. Há até mesmo uma extremamente controversa sequência do chamado estupro marital em que, contra sua vontade, Rhett pega Scarlett no colo e a leva escada acima, em direção à escuridão, para o quarto. E Fleming não se faz de rogado ao, no dia seguinte, mostrar Scarlett feliz da vida (um dos poucos momentos em que ela está genuinamente alegre, sem qualquer tipo de maquinação. Vejo aqui que as reclamações da brigada do politicamente correto não passam de exageros. A mensagem é clara: Scarlett e Rhett se amam e o sexo foi consensual. Entender o contrário é interpretar literalmente um diálogo e a interpretação literal é normalmente a pior e mais preguiçosa.

O sexo é tão onipresente em …E o Vento Levou que ele comanda a fotografia e o design da produção. O trabalho de fotografia, ao encargo também de diversos diretores (esse filme tem mais de um em quase todas as categorias-chave, o que torna ainda mais impressionante o fato de ele ter coesão e lógica – méritos devidos, provavelmente, ao produtor David O. Selznick), utiliza o vermelho de diversas maneiras diferentes. A primeira vez que o vemos em destaque é na sequência ao por-do-sol em Tara, em que Gerald O’Hara (Thomas Mitchell), pai de Scarlett, demonstra para sua filha o quanto Tara é importante na vida deles e o quão é importante a manutenção do latifúndio. O vermelho ao fundo é, ao mesmo tempo de esperança, força e de prelúdio ao que vem, pois, na segunda vez que esse tipo de vermelho aparece, é em uma mistura de vermelho causado pelo fogo em Atlanta misturado ao por-do-sol, é um vermelho dessa vez de morte, de fome, de miséria, que Scarlett usa para esbravejar uma de suas mais famosas frases: “Nunca mais passarei fome!”. Mas o vermelho impera também na mansão de Rhett Butler, especialmente na já citada escadaria (pecaminosa) e na arte barroca ao redor. É vermelha também a terra de Tara, terra essa que, como diz Rhett, energiza Scarlett, em evidente alusão à primeira cena com seu pai e também ao sexo – sempre o sexo! O mesmo vale para o triunfal vestido que Scarlett usa sob o comando de Rhett, logo após um semi-escândalo quando ela é pega nos braços de Ashley. É o vermelho-pecado atacando diretamente a sociedade hipócrita em que ela vive e que, apesar de tudo, é elogiado por Melanie, em mais uma demonstração do quanto ela é doce. E claro, o vermelho está no sangue da guerra que muda o status quo do filme e, de maneira discretamente evidente, no nome da protagonista: Escarlate.

Pode até ser um simbolismo óbvio, mas a maneira com que ele é inserido visualmente na narrativa pelo estupendo trabalho de fotografia é algo que ficará devidamente marcado na mente de quem assistir esse épico. Todo o design de produção e figurino trabalham também com esse conceito em mente, resultando em um conjunto coeso que faz todo o sentido a cada fotograma.

Eu poderia falar muito mais sobre …E o Vento Levou, mas não vou. Isso é uma crítica, não uma tese sobre o filme. De toda sorte, não poderia encerrar os comentários sem abordar a majestosa trilha sonora de Max Steiner, que demorou 12 semanas para compô-la. Seu trabalho se divide em dois grandes leit motifs: as melódicas e belas notas que marcam a relação de Ashley e Melanie e as explosivas e quentes notas que estabelecem o “amor” de Scarlett por Ashley, sendo que não há motif para Scarlett e Rhett. E a ausência desse terceiro – e em tese óbvio motivo musical – se dá, provavelmente, pela onipresente do Tema de Tara, a grande melodia que marca a terra original de Scarlett e que personifica o vermelho que abordei acima, vermelho esse que também marca a relação do casal principal. Portanto, há uma clara fusão de motivos que não exige um terceiro – ou quarto – somente para eles.

…E o Vento Levou, apesar de suas inadequações da retratação da escravidão (isso para usar um eufemismo, claro), ainda é um excelente filme romântico, com temática forte para a época e, de certa forma, mesmo para os cínicos dias de hoje. É um fruto de seu tempo e a “obra hollywoodiana” por excelência, se é que essa classificação pode ser feita. No mínimo, merece a compreensão de todos os cinéfilos de que é um tipo de obra que os ventos que a fizeram não sopram mais.

p.s. Esse é um dos títulos em português mais bem pensados e bem feitos que já vi. Meus sinceros parabéns a quem quer que tenha sido o responsável por ele.

…E o Vento Levou (Gone with the Wind, EUA – 1939)
Direção: Victor Fleming, George Cukor (não creditado), Sam Wood (não creditado)
Roteiro: Sidney Howard, Oliver H.P. Garrett (não creditado), Ben Hecht (não creditado), Jo Swerling (não creditado), John Van Druten (não creditado) (baseado em romance de Margaret Mitchell)
Elenco: Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland, Leslie Howard, Thomas Mitchell, Barbara O’Neil, Hattie McDaniel, Butterfly McQueen, Howard C. Hickman
Duração: 238 min.

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