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Crítica | Édipo Rei, de Sófocles

por Leonardo Campos
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A tragédia, como bem pontuou Aristóteles em sua Poética, é um meio de produzir medo e piedade. Tendo Édipo Rei como um dos direcionamentos de seus registros, o filósofo grego compartilhou da mesma sensação que muitos críticos e espectadores ao longo da história cultural ocidental: a peça de Sófocles, ponto alto do teatro grego, é uma obra-prima avassaladora. Em alguns casos, o texto chega ao estudante no colegial, correndo o risco de ser direcionado pelo olhar equivocado de leituras contemporâneas sobre o incesto, um dos tópicos que são ressaltados pelo leitor com menor sensibilidade diante da peça. Para quem vos escreve, no entanto, a peça chegou no preâmbulo do curso de Letras, momento de maior maturidade intelectual que permitiu um olhar mais crítico diante da complexidade deste texto, ramificado como uma referência não apenas na área da dramaturgia, mas por variados ramos do conhecimento, tais como Direito, Filosofia, Política, psicanálise, dentre outras. Com numerosas possibilidades interpretativas, o primeiro texto da Trilogia Tebana é também formidável por causa de sua atualidade, conteúdo dramático que ainda pode empreender novos e vigorosos debates.

Quando nos dispomos a ler e estudar Édipo Rei, compreendemos não apenas a composição cultural da antiguidade grega, mas também temos a oportunidade de analisar os elementos estruturais que formam a tragédia, gênero dramático considerado elevado, quando tratado em comparação com a comédia. Ao lado de Sófocles, autor que não dispõe de numerosa informação biográfica, Ésquilo e Eurípedes são os nomes que formam o cenário da produção teatral desta época, criadores de histórias derivadas de paixões humanas, numa mescla de anseios e conflitos entre deuses, semideuses e heróis de ordem mitológica. Representantes de grupos da “aristocracia”, os personagens trágicos passam por situações de tensão permanente, todos destinados ao desfecho catártico de suas trajetórias, textos que ajudaram a civilização grega em seu processo de desenvolvimento. Oriundos das celebrações ao deus Dionísio, conhecido pelo ritual do vinho e da fertilidade, as encenações vinham com sonoplastia, encenação repleta de gestos, diálogos e monólogos complexos e preocupação com o espaço cênico.

Baseada no mito grego de Édipo, a peça de Sófocles traz o seguinte “mote”: o personagem do título, originalmente filho de Laio e Jocasta, foi enviado para a morte depois de uma revelação feita ao seu pai. Conta-se que o seu filho iria mata-lo e desposar a própria mãe. Assim, o rei Laio pediu que um de seus “servos” leva-se a criança para uma região e o deixasse para a morte. Receoso da ação, o indicado para o serviço realiza o que foi pedido, mas deixa precedentes para que a criança possa sobreviver. Após ser encontrado por Creonte, rei de outra região, Édipo sobrevive e é tratado como filho adotivo, com gozo de todos os privilégios possíveis. Com o tempo, ele deixa o lar para conquistar outras coisas em sua vida. No caminho, entra em conflito com um homem e na batalha, mata o individuo que depois saberemos ser Laio. Mais adiante, enfrenta a Esfinge, criatura mitológica que é derrotada depois que Édipo decifra o seu enigma sobre “o animal que de manhã tem quatro pés, dois ao meio-dia e três a tarde”, isto é, uma referência ao próprio homem e seu processo evolutivo. Com a derrota da criatura que aterroriza a região, ele conquista o respeito dos tebanos e se torna rei, desposando como prêmio, a esposa Jocasta, alguém que ele sequer imagina ser a sua mãe.

O coro, formado por pessoas que representam o pensamento da sociedade grega, emite pontos de observação que não deixam espaço para redenção na peça. O final, como é de se esperar, será trágico. E nada fácil. Com o tempo, Édipo engravida Jocasta. A honra e a glória de ser um homem poderoso, viril e intelectual, afinal, decifrou a enigmática Esfinge, perde-se quando uma peste assola os tebanos e o faz procurar respostas que o levam ao inevitável: o seu destino. Marcado para aniquilar o seu pai e desposar a sua mãe, Édipo amarga diante das revelações e dentre tantas coisas que lhe acontecem, perfura os próprios olhos e segue uma trajetória arruinado. Numa ida do mítico ao pensamento racional, a peça reforça questões filosóficas importantíssimas, dentre elas, o fato de que a sorte é algo instável e a vida é um feixe de incertezas, temáticas abordadas tão brilhantemente pela cinematografia de Woody Allen, nosso contemporâneo, cineasta que também dialoga com a ideia de que nada que é humano é seguro, afinal, nós parecemos reféns das eventualidades, tal como Sófocles no excepcional texto sobre o mito de édipo. Sim, brilhante, forte, intenso, um texto impossível de ser lido e descrito para o leitor sem adjetivações que o tratem com o devido respeito crítico que merece.

Observada pelos elementos que compõem a sua estrutura, Édipo Rei começa com um questionamento sobre a peste que assola a região. O oráculo informa que o suplício terminará após a expulsão do assassino de Laio. Assim, o astuto Édipo começa a sua transformação de agente desta busca para se tornar o objeto, haja vista as revelações que começam a ganhar corpo e instaurar um painel de situações que levará os personagens e nós, leitores dos textos, espectadores das montagens e dos filmes, ao inevitável desfecho que é pura catarse. Teria sido Édipo o responsável pelo crime que ceifou a vida do rei tebano anterior? Como já sabemos, por conhecer o mito que precede o texto de Sófocles, nos resta acompanhar os desdobramentos do personagem que confrontará a sua própria identidade, algo que Tirésias aponta como “a perdição” do homem tratado como rei, mas tragado por um espiral de culpa e punição diante da convergência entre os planos divinos e humanos, conflitos que em algumas traduções brasileiras são apresentados por meio de diálogos em trimetros e coro em expressão métrica livre.

Ademais, Édipo Rei foi produzida num contexto peculiar na história grega. Foi a época do estabelecimento da democracia e da profissionalização do espetáculo. O mito edipiano, já mencionado na Ilíada e na Odisseia, de Homero, ganha aqui proporções que o permite continuar em novas leituras culturais, tais como Hamlet, de Shakespeare, bem como na psicanálise freudiana, saída do personagem dos palcos para deitar e se abrir no divã. Ler Édipo, da mesma maneira que conferir uma boa montagem ou tradução intersemiótica para cinema me remete ao que o formalista russo Victor Shklovsky teorizou certa vez sobre a obra de arte, mecanismo produzido pelos seres humanos para ser percebido, por si e pelos outros. Sem limitar-se a ter apenas um significado e imprimindo-se para quem a contempla, a arte nos retira do fluxo vertiginoso do cotidiano e nos coloca em confronto com questões do mundo por meio da sua estética. É, como o teórico afirma, a nossa recuperação da sensação de vida. Lembro-me como se fosse hoje do exato dia e hora que encerrei, pasmo, a leitura da peça para os debates de uma aula de introdução literária. Foi catarse de primeira linha, ainda vibrante, quase duas décadas após o primeiro contato com a saga de Édipo em Tebas. Um texto dramático inesquecível.

Édipo Rei— Grécia, c. 429 a.C
Autor: Sófocles
Tradução: Paulo Neves
Editora: Editora LP&M
Páginas: 112

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