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Crítica | El Topo

por Luiz Santiago
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A toupeira é um animal que cava túneis no subsolo. À procura de sol, ela às vezes sobe à superfície. Quando vê o Sol, ela fica cega

Segundo e mais conhecido longa-metragem de Alejandro Jodorowsky, El Topo (A Toupeira) é um filme-jornada que aborda um imenso número de símbolos e gêneros — acid western misturado a um zapata western mais fantasia espiritual, e por aí vai… — com dezenas de possíveis interpretações e uma linha geral de construção de roteiro (escrito pelo próprio diretor) que o público precisa ter sempre em mente para não se perder mais do que o normal. No cerne de tudo se faz valer a visão do cineasta, que disse que El Topo não é exclusivamente um filme sobre este ou aquele tema. Trata-se de um filme sobre todas as coisas que vemos na tela, sendo essas coisas costuradas pela vida e morte de um pistoleiro errante que se vê frente a desafios físicos e espirituais, encontrando personagens tão peculiares no meio do caminho que, sem querer, ele acaba fazendo de sua “caça aos quatro mestres-pistoleiros do deserto” a sua própria jornada de iluminação.

Depois de Fando e Lis, lançado dois anos antes, o diretor aprimorou sua visão narrativa, tornando-se mais rigoroso não apenas na criação da história exposta pelo roteiro (embora seja preciso dizer que os roteiros de Jodorowsky não são nada comuns) mas também na temática em cena. Na concepção de A Gravata e Fando e Lis, muitas influências artísticas se juntaram na mente e execução do artista, que ao flertar com o dadaísmo, o surrealismo e os muitos braços da psicologia, expunha a realidade de um modo bastante rico e visualmente aplaudível. Aqui, os esforços e aprendizado dessas películas anteriores aparecem mergulhados em algo ainda maior. Há mímica, sapateado, números cômicos típicos de artistas de rua, clichês deliciosos do Velho Oeste e uso de imagens que abraçam firmemente os três pilares da filmografia do diretor, a espiritualidade (como força maior do Ser), a religião (como regras escolhidas e também prisão do Ser) e a sociedade (como elemento de corrupção e possibilidade de prazeres e desprazeres do Ser).

Na primeira parte do filme, o prato principal é um particularíssimo western. Principiamos com a cavalgada que o pistoleiro interpretado pelo próprio Jodorowsky faz pelo deserto, acompanhado de seu filho (Brontis, também filho de Jodorowsky na vida real). Como o roteiro não será desenvolvido em forma de drama em torno do pistoleiro El Topo, não conhecemos nada sobre ele. O menino nu enterra o seu primeiro brinquedo e a fotografia de sua mãe. Na fala do pai, aos 7 anos, o garoto já é um homem. Notem que o longa começa com duas quebras muito importantes: a perda da inocência e o corte definitivo com o laço materno. A partir daí, a obra mostra algumas percepções sobre a masculinidade frente à feminilidade (os sapatados femininos metralhados, a mulher feita de caroços de feijão para satisfazer as fantasias de um indivíduo e a banana delicadamente descascada e depois fatiada). Após o desligamento do jogo infantil e da visão um tanto sagrada que a mãe tem nesta sociedade, uma parte do mundo da libido é mostrada e então a caça — aquilo que dá sentido à vida; o objetivo do pistoleiro — pode começar.

Alguns espectadores podem reclamar do processo de dublagem original (de fato, não é bom, embora isso não me incomode aqui) e de uma certa lentidão na forma como a trama é desenvolvida, mas neste ponto, defendo o ritmo do filme pelo tipo de proposta que o diretor faz nessa primeira parte. Sua intenção principal é colocar o pistoleiro diante dos mais variados exemplos de comportamentos humanos e ordens sociais para que ele, “depois de ter visto tudo o que é mundano”, possa dar início à sua redenção espiritual. Em cada bloco dessa primeira parte o roteiro cria situações de desprendimento, espanto e baixeza dos homens, nunca envoltos em uma temática só. Como o próprio cineasta afirmou, El Topo é um filme sobre tudo o que se possa ter e viver. Encerrá-lo apenas em uma vereda de espiritualização, de críticas sociais ou escolas psicológicas é simplesmente diminuir o filme. Aliás, a figura de redenção do personagem se dá justamente porque ele vê e vive de tudo: dos sete pecados capitais à uma (das muitas) referências bíblicas, lembrando o leão morto por Sansão que aparece com colmeias de abelha e mel em abundância em sua barriga (“do comedor, saiu comida; e do forte, saiu doçura“). Com esse acúmulo de experiências é que o pistoleiro está pronto para a sua provação final, para aquilo que o fará renascer: a traição de sua mulher.

É bastante simbólico (e messiânico, inclusive) que a cena da “morte” de El Topo próximo a uma ponte (vejam bem) seja o início da segunda parte do filme, a parte onde tudo o que foi construído antes passa a ser desconstruído e colocado à prova. A diferença na direção de fotografia não é tão grande (com exceção das sequências na caverna, belissimamente filmadas em contraste diante de seus tons naturais), mas o ritmo muda imensamente. A esta altura, o espectador já está acostumado com a mudança temática e simbólica dos figurinos de El Topo e da variedade de roupas, maquiagem e personalidades que existem à sua volta, com indivíduos de diferentes etnias e condições físicas. Tudo isso é mantido na segunda parte, mas recebe um forte impacto na mudança do ritmo, que se torna negativamente mais lento; e da narrativa, que investe em pequenos ciclos cotidianos, os “dias no povoado“, que enjoam rapidamente e que possuem poucas quebras (emboras excelentes e chocantes) ao longo de seu desenvolvimento. Após a cena da ponte, El Topo nasce em um ambiente para o qual ele precisa ser Salvador e não Destruidor, como lhe era de praxe.

Com planos cada vez mais distanciados, como se estivesse mesmo tornando o protagonista parte de um todo e não mais o individualizado através da câmera, o diretor nos prepara para a despedida de El Topo, purificado pelo fogo e também fazendo o caminho para a morte à la Thích Quảng Ðức. Também como base de todo bom western (mesmo os muito incomuns como este), a finalização desalentada aparece. Mesmo que um ou outro aspecto desse encerramento possa ser lido como algo positivo, ele sempre estará envolto em horror: o extermínio dos mutantes, o extermínio dos habitantes da cidade, o fim da jornada de luz do pistoleiro — manchada e retomada, em seu último ato — e o início de uma nova caminhada para os dois filhos e a mulher, dando, inclusive, a fantástica ideia de ciclo, se pensarmos que a mulher deve morrer em pouco tempo e o homem mais velho deve seguir a cavalo, perambulando pelo deserto com o irmão (e, nessas condições, filho). Uma jornada de iluminação que nunca termina, passando de geração para geração.

El Topo (México, 1970)
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, José Legarreta, Alfonso Arau, José Luis Fernández, Ali Junco, Gerardo Zepeda, René Barrera, Vicente Lara
Duração: 125 min.

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