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Crítica | Ele Que o Abismo viu: A Epopeia de Gilgámesh, de Sin-léqi-unnínni

Uma grande jornada de aprendizado.

por Luiz Santiago
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Ele Que o Abismo viu: A Epopeia de Gilgámesh é considerado o provável começo de tudo na História da literatura. O poema épico é o que hoje temos de mais antigo registrado, em termos de produção ficcional, e foi reescrito e alterado inúmeras vezes ao longo dos séculos. A versão mais recente que temos desse texto — e que aqui no Brasil existe numa tradução diretamente do acádio que é uma verdadeira obra-prima, realizada pelo professor Jacyntho Lins Brandão –, é atribuída ao sábio Sin-léqi-unnínni. Ou seja, esta é a última versão copiada/compilada do poema que já vinha tradicionalmente de textos clássicos da Mesopotâmia, e que por volta de 1300 a 1000 a.C. ganhou a sua variante babilônica clássica, com adições e estruturação marcantes feitas por este sábio. A publicação brasileira da obra que merece todos os louros possíveis é a do professor Brandão, lançada pela Editora Autêntica em 2017. O cuidado que a editora teve para compor o material de apoio para este livro é absolutamente sublime, e as análises do tradutor na introdução e na segunda parte do livro, onde faz uma leitura de contexto, de questões linguísticas, históricas, simbólicas e comparativas para cada uma das 12 Tabuinhas (pequenas tábuas de argila onde os sumérios registravam seus textos) que compõem a epopeia ajudarão o leitor a ter uma experiência riquíssima e completa quanto ao entendimento e também interpretação da obra.  

A redescoberta da Epopeia de Gilgámesh aconteceu durante as escavações de Austen Henry Layard e Hormuzd Rassam no local da antiga cidade de Nínive (hoje a colina/morro/tel arqueológico de Kuyunjik, nos subúrbios de Mossul, Iraque), onde encontraram milhares de pedaços de tabuinhas cuneiformes. Esses fragmentos desenterrados pelos arqueólogos — vale dizer que são raríssimos os achados de tabuinhas completas —  foram enviados para o Museu Britânico, onde um dos primeiros decifradores da escrita cuneiforme, Henry Creswicke Rawlinson, organizou a tradução e publicação do material. Conforme mais fragmentos encontravam a respeito de Gilgámesh (c. 2600 a.C. ), rei de Uruk (quinto rei da Era pós-diluviana, ou seja, no período protodinástico de Uruk), mais estudos eram concebidos a respeito dos mitos narrados na epopeia. Falava-se da relação que tinha com o Gilgámesh real e os muitos paralelos que guardava com outras narrativas antigas. Registros em línguas hurrita e hitita também foram encontrados, e cada vez mais capítulos e versos foram sendo adicionados à história, até chegar à versão atual. Esta, infelizmente, ainda não é uma versão completa, mas é capaz de nos dar uma boa noção do que inicialmente se pensou a respeito dos feitos fantásticos, milagrosos, espirituais e morais que esse grande herói mesopotâmico protagonizou.

Em termos de datação, usarei as informações fornecidas pelos estudos na versão da Editora Autêntica. Vamos a elas:

  • 2100 (século XXII) a 1600 (século XVII) a.C. surgem os poemas sumérios Gilgámesh e Agga; Gilgámesh e Huwawa; Gilgámesh e o Touro do Céu; A Morte de Gilgámesh e Gilgámesh e Enkídu.
  • 1800 a 1700 a.C. surgem os poemas babilônicos, escritos em acádio: Gilgámesh e Humbaba e Narrativa do Dilúvio no Atrahasis ou A epopeia de Atrahasis.
  • 1700 a 1600 a.C.: consolidação dos poemas babilônicos dessa saga, com adição do prólogo, posteriormente dividido em duas partes: Ele Que o Abismo Viu e Proeminente Entre os Reis.

E claro, além da concepção geral em conteúdo dessas obras, também temos as suas fases de compilação, suas diversas variações de registro ao longo dos séculos. Segue abaixo a indicação dessas fases.

  • versões babilônicas antigas (entre 1700 e 1600 a.C.)
  • versões babilônicas médias (entre 1600 a 1300 a.C.)
  • versão babilônica clássica (entre 1300 e 1200 a.C.)
  • Versão mais recente do “poema completo”: Biblioteca de Assurbanípal, 669 a 627 a.C.

Esta é a Tabuinha 11, onde está registrada a narrativa do Dilúvio.

O conteúdo desse poema épico mescla inúmeros elementos de mitologia mesopotâmica com pensamento cultural da Antiguidade local e caraterísticas de fantasia, numa abordagem mitológica para as atitudes do rei Gilgámesh, que desde os primeiros versos é referenciado como alguém de imenso conhecimento, força e experiência: “Ele que o abismo viu, o fundamento da terra, / seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo, / Explorou de todo os tronos, / De todo o saber, tudo aprendeu, / O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu, / Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era“. A epopeia desse homem terá o seu momento de “Jornada do Herói” após uma mudança muito grande acontecer em sua vida. Em muitos aspectos, o poema versa sobre a condição humana e seus limites, dando grande destaque para as questões envolvendo vida, morte, amizade e aprendizado através da dor. No início da epopeia, Gilgámesh não é um homem elogiável. É um rei arrogante que dorme com as mulheres antes que elas durmam com seus noivos; é alguém que vive desafiando e espancando todo mundo; alguém a quem todos temem e que a todo momento está disposto a mostrar sua força. Essa característica íntima do personagem (o fato de ser, em essência, um guerreiro) permanecerá com ele, mesmo transformada, até o final de sua jornada e de seu melhor entendimento da própria existência.

Suas atitudes são tão terríveis, que a deusa Arúru cria um mortal, do barro, para ser o grande opositor de Gilgámesh. Alguém que o impeça de continuar tornando a vida dos habitantes da cidade de Úruk (apelidada de “O Redil”) um inferno. É assim que nasce Enkídu, que em tudo é retratado como um “Homem-Fera”, uma espécie de Tarzan bestial todo peludo (frequentemente representado com chifres) que comia com os animais, desarmava as armadilhas dos caçadores, não tinha nenhuma maldade… enfim, nasceu com um propósito de fazer frente a um poderoso arrogante e vivia como um Adão num Paraíso terrestre. Essa parte da narrativa ficará ainda mais parecida com a mitologia bíblica, do Livro do Gênesis, quando a meretriz Shámhat entra em cena. Nesse ponto, é preciso fazer um pequeno contexto sobre o papel da mulher na Mesopotâmia. Muitas integravam as castas de mulheres que serviam nos templos, e acabavam assumindo o papel de “meretrizes”, uma palavra muito bem utilizada por Jacyntho Lins Brandão em sua tradução direta do acádio, porque as mulheres que se dedicavam a esta atividade não eram “simples prostitutas”, no sentido como entendemos essa ocupação hoje. Já ouvi muita gente denominando Shámhat como “Sacerdotisa ou Alta-Sacerdotisa do Templo de Ishtar“, mas o poema não nos dá, em nenhum momento, esse tipo de indicação superior.

Como meretriz, Shámhat tinha o papel de ensinar, de seduzir sexualmente, mas também de retirar Enkídu daquela condição animalesca. Ela era a responsável por trazer para o homem bestial as ideias da civilização, servindo como “fruto da Árvore do Conhecimento“. Por seis dias e sete noites a dupla esteve ocupada com os prazeres da carne. Ao final desse período e após ser ensinado por Shámhat a como se vestir, se portar, falar na sociedade ao seu redor, Enkídu procura retornar para o seu contato com os animais. Mas os animais fogem dele, como se tivessem medo. A inocência de Enkídu não existia mais. E ele é obrigado a deixar a floresta, ao lado de Shámhat, como um Adão saindo do paraíso, após pecar. Nas tabuinhas iniciais, os encontros entre personagens são os pontos mais interessantes do poema, sendo o principal destes o embate entre Enkídu e Gilgámesh, uma briga que abala as estruturas de toda a cidade e que termina com a percepção do rei para o fato de que aquele com quem brigava não era um inimigo. Seus sentimentos rapidamente mudam e ele se une de corpo e alma a Enkídu, tornando-se o seu grande amigo, companheiro, irmão em armas e até mesmo um noivo. Este é o ponto em que muita gente começa a puxar os cabelos, mas os versos do capítulo Os Sonhos de Gilgámesh, ao final da Tabuinha 1, são absolutamente claros ao indicar uma futura relação sexual entre o rei e seu futuro oponente.

Enkídu e Gilgámesh.

Ao interpretar o primeiro sonho de Gilgámesh, sua mãe Nínsun, diz o seguinte, a partir do verso 268:

Vem para ti forte companheiro, amigo salvador,

Nesta terra é ele que rija força tem,

Como uma rocha de Ánu é sua rija força.

.

A ele amarás como uma esposa, por ele te excitarás,

Ele, forte, sempre a ti salvará.

É bom, é precioso o teu sonho!

O que Bradão diz a respeito do segundo sonho, quando o protagonista vê um machado e repete toda a jornada de atração pelo objeto, algo que Nínsun interpretará como estando ligado a uma pessoa por quem Gilgámesh irá se excitar (mais sobre isso adiante) é o seguinte:

Saliente-se, enfim, que o verbo usado neste verso, hababum (cf. elisu ahbub, “por ele me excitei“), é o mesmo que aparece nos v.186 e 193 para descrever o último estágio do contato, anterior ao coito, entre Enkídu e Shámhat. Trata-se, portanto, de uma linguagem altamente erótica, a qual, segundo GBGE (Andrew R. George, na versão de Oxford, 2003, p.454), “implica uma relação sexual”.

Já sobre o sonho do machado, que vi muita gente se encaminhar para interpretações hilárias sobre o tamanhos dos músculos dos dois grandalhões, temos a seguinte indicação a respeito de uma particularidade da língua acádia:

[…] o termo que designa “machado” – hassinmu – é semelhante a assinnu, “jovem dedicado à prostituição sagrada“.

E por fim, uma consideração final a respeito de toda a relação de amizade e parceria que também passa por relações íntimas entre os dois personagens (vale notar que ambos rejeitam qualquer contato íntimo com mulheres depois que se conhecem, sendo que Gilgámesh rejeita o amor da própria deusa Ishtar, que se apaixona e se declara para ele!), após uma definição de Kilmer defendendo a tal relação de broderagem, temos uma citação de Andrew R. George a esse respeito:

O debate sobre a natureza da amizade de Gilgámesh e Enkídu — homossexual ou platônica — divide ainda os comentadores. No meu ponto de vista, a linguagem dos sonhos é clara. Gilgámesh amará Enkídu como uma esposa.

E esse amor é tanto, que ambos estão sempre juntos, trocando algumas farpas, levantando o moral um do outro e ajudando-se no enfrentamento ao monstro Humbaba, no episódio da Floresta de Cedros e na briga contra o Touro do Céu, enviado por Ishtar como vingança à rejeição de Gilgámesh. Este é o ponto, inclusive, em que os deuses decidem que a dupla passou dos limites, e que um deles deverá morrer. A corda, desde a Antiguidade, sempre quebra para o lado do mais fraco e é claro que o totalmente mortal é o “escolhido”. Este é o ponto do poema em que tudo parece ir muito bem, a amizade dos dois homenzarrões vai de vento em popa e eles não se importam com as consequências de suas atitudes. Misteriosamente, Enkídu adoece e passa doze dias (número bastante simbólico) em agonia, vindo a morrer no décimo terceiro. O impacto dessa morte sobre Gilgámesh é avassalador e aí está um dos meus pontos favoritos do poema. O lamento dele pela morte do amado, do amigo, é muitíssimo tocante. Ele pranteia o parceiro “como uma viúva” e só libera o corpo para os rituais quando o primeiro verme sai pelo nariz de Enkídu. Nesse momento de luto, Gilgámesh se dá conta de que é mortal. Sua “jornada do herói”, a partir daí, será para encontrar a imortalidade.

Gilgámesh constrói o barco que o levará a Utnapistim.

Em várias ocasiões do poema nós nos deparamos com trechos “em branco”, inúmeros versos que se perderam. Algumas tabuinhas estão mais defasadas que outras, mas eu nunca lamentei tanto o desaparecimento de material quanto no final da epopeia (refiro-me às Tabuinhas 9 e 10), que é onde começam as andanças do protagonista. Após o luto, ele sai pelo mundo para tentar entender algo que o atormentava. Batalha contra leões; defronta-se e dialoga com os homens-escorpião; conversa com Shidúri, a taberneira que mora às margens do Mar Cósmico; acaba recebendo as orientações do barqueiro Ur-shánabi (uma espécie de Caronte) para construir o barco que deveria atravessar o Mar… até que finalmente chega ao seu destino final, à presença de Uta-Napíshti/Utnapistim (uma espécie de Noé), o único mortal que sobreviveu ao dilúvio. Na Tabuinha 11, temos a fantástica narrativa desse cataclismo, e aqui, mais uma vez, entramos num terreno de disputas sobre pioneirismo. Afinal, Moisés se inspirou na narrativa mesopotâmica para criar o dilúvio bíblico? As semelhanças entre as duas histórias são grandiosas e existe também a questão da datação: o Livro do Gênesis foi escrito entre 1445 e 1405 a.C., enquanto os primeiros poemas babilônicos, escritos em acádio, sobre o evento do dilúvio datam de 1800 a 1700 a.C. 

Existe uma moral ou um ensinamento extremamente valioso ao fim da Epopeia de Gilgámesh. Depois de o conhecermos em três estágios de sua vida (pré, durante e pós-Enkídu), notamos o quanto o personagem cresceu, o quanto sua arrogância foi reduzia a pó e o quanto que ele aprendeu. A frustração final, quando a cobra rouba a planta espinhosa que o personagem conseguiu colher no fundo do Mar Cósmico (seria este o abismo referido no título?) — uma planta capaz de dar a juventude eterna para quem a come (e é lindo ver que no verso em que se diz que a cobra comeu a planta, há a citação da mudança da pele que o animal trocou naquele momento) –, não resulta em atos violentos. É como se Gilgámesh finalmente entendesse que a “imortalidade” estava com ele o tempo inteiro. Ele não é resumido pelo corpo físico ou pela matéria. Um dia ele trocaria de corpo e estaria no mundo dos espíritos, seguindo a sua vida.

É o fim de uma jornada de provações que levam o homem à compreensão de sua existência, da necessidade de deixar uma marca no mundo, de exprimir sentimentos e de conquistar coisas. O fim de uma jornada que mostra que é sábio fazer as pazes com a morte e viver a vida em apaixonada contemplação do existe ao redor. Ao fim da Tabuinha 11, a sensação que temos é que Gilgámesh finalmente cresceu e que estava pronto para começar uma nova fase de sua vida, sabendo, agora, que o que quer que viesse pela frente, um dia terminaria. E pela forma como o poema expõe a situação (até mesmo com algo relacionado à estranha e deslocada 12ª Tabuinha), a posse desse conhecimento se resumia em uma única frase: paz de espírito.

Ele Que o Abismo viu: Epopeia de Gilgámesh (Ša nagba imuru)
Escriba/compilador/autor da versão atual: Sin-léqi-unnínni
Data da escrita dos primeiros poemas: Suméria e depois Império Acádio (Mesopotâmia), 2100 a 1600 a.C.
Data de escrita/compilação por Sin-léqi-unnínni: Algum período entre 1300 a 1000 a.C.
Primeira publicação Ocidental da tabuinha com a narrativa do dilúvio: Reino Unido, 1872
Publicação atualizada do poema conforme material encontrado na Biblioteca de Assurbanípal: 2003, comentada por Andrew George.
Data do acréscimo à versão babilônica média: 2008, após os manuscritos achados em Ugarit.
Data de publicação da versão brasileira: Editora Autêntica, 20 de outubro de 2017.
Tradução (do acádio) para a versão da Editora Autêntica: Jacyntho Lins Brandão
366 páginas

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