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Crítica | Elemento de Um Crime

por Marcelo Sobrinho
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Lars von Trier fora um jovem rebelde nos tempos em que frequentou a Escola Dinamarquesa de Cinema. Rompendo com as regras impostas por seus próprios professores, o cineasta nascente produziu nessa fase alguns curta-metragens curiosos, que exibiam forte influência do cinema de Andrei Tarkovski, mas ao mesmo tempo marcados por uma forte busca de identidade e estilo próprios. É o que se nota por exemplo em Nocturne, de 1980, em que Lars von Trier explora metáforas e rimas visuais que combinam um experimentalismo bem a seu modo às marcas estilísticas do mestre russo. Também já são fortemente sentidas as inquietações e a ansiedade do cineasta, que marcariam sobremaneira a sua trajetória na sétima arte. Contudo, a primeira obra de maior relevo do diretor dinamarquês viria apenas em 1984, com uma estreia em longa-metragens que reuniu e potencializou todas experimentações dos primeiros trabalhos.

Se hoje, Elemento de Um Crime parece um título à deriva dentro da filmografia de von Trier, na época de seu lançamento ele conseguiu ao menos chamar a atenção de Cannes. Muito mais pelo exercício estilístico do que para o conteúdo em si. Mas, mesmo que ainda muito decalcado do Tarkovski de O Espelho e Stalker, seria injusto acusar o primeiro longa-metragem do escandinavo de vazio de substância. Lars von Trier demonstra não só domínio técnico por trás das câmeras, mas já anuncia algumas de suas marcas. A história do investigador Fisher, que, sob hipnose, revive as lembranças da investigação de um crime na Europa, traz alguns maneirismos que seriam explorados posteriormente. A consonância visual, dramatizada em slow motion, entre as cenas em que uma mulher (Kim) e uma menina quebram o vidro de uma janela enquanto são puxadas pelo assassino, sinaliza um procedimento estético que se repetiria, por exemplo, na “trilogia da depressão”. Além disso, a atmosfera trieriana também já está toda lá. Aturdindo o espectador.

Entretanto, é necessário reconhecer que sim, Elemento de Um Crime funciona como um neo-noir diferente de tudo o que Lars von Trier faria nas fases posteriores de sua carreira. O flashback, aqui com certo sabor de delírio ou de desvario, é um ponto fora da curva nos filmes do cineasta. Também o são as longas narrações e a câmera excessivamente digressiva (herança de Tarkovskyi), o uso do zoom para revelar a tensão nos rostos dos personagens e a montagem em fusão e cheia de planos sobrepostos. É interessante notar também que a cinematografia quase monocromática (no caso, em sépia) dá a noção do ambiente urbano não como decadente e opressor, como se fazia habituamente no expressionismo alemão e no seu legatário – o cinema noir clássico, mas de um local verdadeiramente pestilento e infernal. Das janelas, não se vê a sujeira dos filmes de Fritz Lang e Orson Welles, mas as chamas que nem a chuva interminável consegue apagar. A experimentação estética de Lars von Trier é radical e nervosa.

O diretor dinamarquês esgarça a própria fórmula narrativa do noir e faz no cinema algo semelhante ao que Samuel Beckett fizera com sua prosa puída em Molloy. Se os protagonistas de Lang ou Welles exibiam caráter francamente duvidoso e violento, aproximando-os dos próprios vilões das histórias, Lars von Trier vai além ao metamorfosear gradualmente o seu investigador Fisher em Harry Grey – o próprio assassino que ele busca. Elemento de Um Crime vai assumindo contornos narrativos tão imprecisos que é possível duvidar de boa parte dos acontecimentos que o protagonista narra sob hipnose. Há momentos cujos signos permanecem em aberto, como aquele em que Fisher repete os disparos lançados ao vazio que seu mentor Osbourne havia realizado algumas cenas antes. Talvez a única coisa capaz de unir todas as pontas de um filme tão enigmático seja mesmo a fala do próprio Osbourne, quando ele recebe a visita de seu pupilo pela primeira vez. O ancião declara: “Sempre procuramos o elemento do crime na sociedade. Por que não procurá-lo na natureza do homem?”. Parece bastante razoável suspeitarmos que seja disso que trata o filme – um exame da natureza de seu protagonista.

É possível que aqueles que assistiram ao primeiro longa-metragem de Lars von Trier no ano de seu lançamento jamais imaginassem os rumos que a carreira do dinamarquês tomaria. Igual surpresa é a dos assistem hoje ao seu primeiro filme após conhecer a filmografia que viria a seguir. Mas, se Elemento de Um Crime está longe de ser uma estreia esfuziante, ao menos serviu com o anúncio de um grande talento, que alçaria vôos bem mais altos nos anos seguintes. Trata-se de um filme de amadurecimento e é bom que seja compreendido como tal. O estilo definitivo de Lars von Trier, como todos sabem, seria encontrado muito, mas muito longe dali.

Elemento de Um Crime (Forbrydelsens Element) – Dinamarca, 1984
Direção:
Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier, Niels Vørsel
Elenco: Me Me Lai, Michael Elphick, Esmond Knight, Jerold Wells, Lars von Trier, Astrid Henning-Jensen
Duração: 104 min.

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