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Crítica | Em Busca de Watership Down

por Ritter Fan
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O romance Em Busca de Watership Down (também traduzido por aqui como A Longa Jornada), que conta a história da jornada de uma ninhada de coelhos liderada por Hazel em busca da terra prometida depois que Fiver tem uma visão apocalíptica foi fruto das histórias que Richard Adams contava para suas filhas em suas longas viagens de carro. Depois de transformar seus improvisos em livro por insistência das jovens, ele passou por várias editoras que recusaram publicação até que, em 1972, uma delas embarcou no projeto que se mostrou um sucesso imediato.

Em 1978, veio sua primeira adaptação cinematográfica, a animação Uma Grande Aventura, também enorme sucesso em solo britânico, mas carregado de controvérsias sobre a maneira gráfica como mostrava a violência leporídea, o que chocou muita gente que, provavelmente, não havia lido o livro. A segunda adaptação audiovisual foi em forma de série de TV, também em animação, entre 1999 e 2001, com 39 episódios em três temporadas.

Demonstrando a imortalidade da obra original, a BBC e o Netflix juntaram forças e produziram uma terceira adaptação, novamente em animação, mas, agora, em formato de minissérie, com a produtora britânica transmitindo-a ao longo de dois dias seguidos em duas partes e a empresa de streaming quebrando-o em quatro capítulos de 50 minutos. O resultado desaponta na qualidade gráfica e surpreende na fidelidade da adaptação do primeiro romance de Adams, com o balanço, porém, sendo muito positivo.

Em pleno fim da segunda década do século XXI, lançar uma obra em computação gráfica digna de duas gerações atrás de videogame pode parecer inescusável, especialmente considerando que a referida obra teve um orçamento de 20 milhões de libras. E, de fato, é. Afinal de contas, a tecnologia existe para evitar que o resultado do esforço em se colocar os queridos coelhinhos da literatura transforme-os em seres de pouca agilidade, que andam de forma truncada e que não têm lá muitas expressões faciais, exatamente o oposto do que deveriam ser. A escolha pela tentativa de se chegar a algo que talvez possa ser chamado de próximo do fotorrealismo certamente contribuiu para que a computação gráfica ficasse mais gritantemente ainda “atrasada” e tudo poderia ser evitado com algo mais simples, que fugisse do realismo, já que ele não é estritamente necessário para a história sendo contada.

Mas a grande verdade é que a minissérie funciona apesar da computação gráfica, que, convenhamos, não é uma desgraça “inassistível”. Ela está apenas aquém do que poderia – ok, deveria – ser e isso até pode ser um pecado mortal hoje em dia, mas, no meu livro, se a obra consegue compensar sua aparência com outros elementos importantíssimos como roteiro, direção e atuação, é perfeitamente possível chegar ao veredito que cheguei, de que, no conjunto, Em Busca de Watership Down é uma minissérie poderosa, atual e emocionante.

A urgente jornada de Hazel (James McAvoy), depois dos avisos de destruição e morte de pegada mística de seu irmão Fiver (Nicholas Hoult) e mais alguns poucos amigos que eles conseguem arregimentar, começa sem maiores delongas, depois de um prólogo que nos conta a “origem” dos coelhos e impõe toda a mitologia bem particular que Adams criou para esse seu universo. A direção é simplesmente para longe de onde estão suas tocas atuais, ainda que não demore para que Fiver, novamente usando sua sensitividade, os leve até o morro Watership Down, local que efetivamente existe na costa sul da Inglaterra, próximo de onde o autor da obra morava com suas filhas.

A jornada física é, também, claro, a famosa “jornada do herói”, com Hazel tendo que se provar como o verdadeiro e indiscutível líder do grupo heterogêneo, amadurecendo no processo. Se o lado transcendental fica quase que inteiramente por conta do pequeno Fiver, o lado prático cai diretamente no colo de Hazel, ajudado principalmente pelo cético e grandalhão Bigwig (John Boyega). Mas a chegada a Watership Down não é ponto final da narrativa, acontecendo até bem cedo na minissérie, ainda no final do primeiro episódio. Há necessidade de mais para que o local realmente torne-se o novo lar do grupo, principalmente coelhas, já que o grupo inicial é integralmente formado de machos. Essa segunda parte da jornada é que realmente torna a história irresistível, com momentos muito bem construídos de tensão, seja na fazenda próxima ao Down, seja no terrível viveiro/campo de concentração comandado com mão de ferro pelo ditador General Woundwort (Ben Kingsley).

Quem já leu o livro e/ou viu o longa de 1978 notará que a adaptação é muito fiel em quase todos os quesitos, com modificações e simplificações aqui e ali para uma melhor transposição do material. Um ponto importante é que a violência explícita, ou melhor dizendo, o sangue, quase que completamente desaparece da minissérie, o que gerou polêmica e reclamações, uma ironia do destino, já que foi a presença de sangue que trouxe polêmica à adaptação setentista. No entanto, muito sinceramente, da forma como o roteiro de Tom Bidwell foi escrito, a aparição do sangue jorrando é desnecessária, como, aliás, costuma ser na grande maioria das obras ditas com violentas. E não, não sou purista de forma alguma nesse ponto, mas um bom trabalho de roteiro e direção, mesmo quando a pegada é violenta, supre a falta de sangue. A sugestão é, muitas vezes, pior do que mostrar tudo e é isso que Bidwell e Noam Munro conseguem.

Há vários exemplos de como o sangue é algo acessório que realmente não precisa ser visto para ser sentido. Na minsissérie, o principal deles é o design de Efrafam, o viveiro comandado por Woundwort, que nos remete diretamente aos campos de extermínio nazistas, com direito até a trilhos de trem que chegam ao local, aparentemente uma fábrica abandonada com altas chaminés. A natureza opressiva do local somado à violência verbal e física do general e de seus soldados criam tensão e desespero no espectador, com o sofrimento dos coelhos oprimidos do lugar sendo absolutamente palpável e muito mais asqueroso do que se litros de sangue tivessem sido digitalmente derramados. E, claro, a crítica sócio-política fica evidente bem ali, ainda que a crítica ambiental seja um pouco mão pesada desnecessariamente.

E o mesmo vale para os segundos tensos de Fiver no meio do trânsito de uma cidade humana local e a perseguição na fazenda quando Hazel e seu grupo tentam libertar coelhinhas de gaiolas. A morte e a dor perpassam cada sequência, com a direção extraindo o máximo do fraco CGI por meio de uma direção de atores que consegue resultar em trabalhos marcantes de vozes, notadamente McAvoy, Hoult, Boyega, Kingsley e Peter Capaldi, este último vivendo Keehar, a folgada, mas muito importante gaivota que se junta ao grupo em Watership Down.

A nova adaptação da clássica obra de Richard Adams faz jus ao material fonte mesmo que não deixe o espectador de queixo caído por seu visual. Mas visual não é tudo e os coelhos heroicos liderados por Hazel fazem bonito mesmo não sendo lindos.

Em Busca de Watership Down (Watership Down, EUA/Reino Unido/Irlanda – 23 de dezembro de 2018)
Direção: Noam Munro
Roteiro: Tom Bidwell (baseado em romance de Richard Adams)
Elenco: James McAvoy, Nicholas Hoult, John Boyega, Ben Kingsley, Tom Wilkinson, Gemma Arterton, Peter Capaldi, Olivia Colman, Mackenzie Crook, Anne-Marie Duff, Taron Egerton, Freddie Fox, James Faulkner, Lee Ingleby, Miles Jupp, Daniel Kaluuya, Rory Kinnear, Craig Parkinson, Rosamund Pike, Daniel Rigby, Jason Watkins, Adewale Akinnuoye-Agbaje, Lorraine Bruce, Gemma Chan, Lizzie Clark, Rosie Day, Henry Goodman, Peter Guinness, Murray McArthur, Sam Redford, Charlotte Spencer
Duração: 202 min. (4 episódios no total pela Netflix, dois pela BBC)

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