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Crítica | Embarque (À L’abordage)

O filme perfeito que não vale a pena analisar.

por Michel Gutwilen
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Pode parecer positivista recorrer ao mundo das exatas para falar de arte, mas me parece didático recorrer a dois conceitos da física para fazer uma divisão entre dois tipos de filmes: os que fazem reflexão (reflexivos) e os que fazem refração (refratários). Pegando uma explicação dada pelo primeiro site institucional que aparece no Google, “a reflexão é o fenômeno que consiste no fato de a luz voltar a se propagar no meio de origem, após incidir sobre uma superfície de separação entre dois meios.” Já a “refração é o fenômeno que consiste no fato de a luz passar de um meio para outro diferente.

O que seriam os filmes de refração? Ora, há experiências deslumbrantes e maravilhosas que o Cinema nos proporciona. Ao acabar, ficamos pensando no quão incrível foi aquela sessão de Cinema — com “c” maiúsculo. Trata-se de um filme e o reconhecemos como tal. Ao acabar a sessão, o pacto de imersão entre espectador e cineasta acaba, com a lembrança de que o que vimos fora uma experiência manipulada consentida. 

O filme nos deslumbra tanto que ficamos falando sobre o evento cinematográfico que ele foi. Pensamos no quão genial foi a sua realização, naquela direção, no quanto amamos o Cinema e suas possibilidades. Eu, enquanto crítico, fico com vontade de escrever textos, de desvendar seus processos de mise-en-scène, de encontrar seus subtextos, de confrontar seus temas. Seriam esses os filmes refratários, pois a luz sai da realidade, bate na tela e entra no território do Cinema para dele não sair mais. Muitos dos meus filmes preferidos são deste gênero (Um Corpo que Cai, Obsessão, Miami Vice, Céline, O Exorcista, O Mundo Vivente) e não há problema algum nisso, uma vez que isso se trata apenas de uma diferenciação expositiva (não qualitativa).

Por outro lado, há os filmes reflexivos, e À L’Abordage! é um deles. Portanto, a luz sai da realidade, bate no espelho que é o Cinema, e volta para a realidade. Desculpem-me quem esperava que eu analisasse minuciosamente o filme de Guillaume Brac, mas me encontro diante de um paradoxo crítico. Afinal, eu não tenho vontade de escrever sobre a “obra de arte” À L’Abordage!, de observá-lo enquanto parte de uma gramática artística com signos linguísticos próprios, enquanto parte de um sistema. Assim que a tela da sessão escurece, eu não quero continuar olhando para o Cinema, mas quero ir ao mundo lá fora, viver a vida, ser feliz, estar no ambiente empírico e sair da teoria. Há muito pouco para se falar deste filme, tudo já está falado durante sua sessão. 

À L’Abordage! é o prazer da vida enquanto um sentimento contagiante que se espalha pela tela e ocupa cada fotograma. Acolhe-se todos os personagens e não há julgamentos a eles, apenas acompanha-se a vida em um dia de verão. Milagres como esse acontecem de vez em quando e devemos ser muito gratos a estes espelhos que nos lembram como o mundo pode ser um lugar tão bonito para se viver e não só de ser visto através de uma tela. Que vivam eternamente filmes como Um Dia no Campo (Jean Renoir), Francisco, Arauto de Deus (Roberto Rossellini), Pauline na Praia (Eric Rohmer), Os Últimos Dias da Disco (Whit Stillman) e, agora, À L’Abordage!

Embarque / All Hands on Deck (À L’Abordage!) — França, 2020
Direção: Guillaume Brac
Roteiro: Guillaume Brac,  Catherine Paillé
Elenco: Éric Nantchouang, Salif Cissé, Édouard Sulpice, Asma Messaoudene, Ana Blagojevic, Lucie Gallo, Martin Mesnier, Nicolas Pietri, Cécile Feuillet, Jordan Rezgui, Marie Anne Guerin, Sylvain Caillet, Roger Maillet, Colo Lévy, Irina Brac Laperrousaz
Duração: 98 mins.

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