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Crítica | Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem

por Rodrigo Pereira
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As discussões acerca das virtudes e defeitos da internet são incontáveis e, infelizmente, o lado negativo parece sempre dar as caras com maior frequência por aí. Contudo, há não muito tempo atrás tive a felicidade de cruzar com a parte virtuosa das redes sociais, com pensamentos de pessoas sobre como o cantor, compositor, produtor, empresário e escritor Emicida é, também, professor. Seja através de suas músicas, entrevistas ou até mesmo de suas contas nestas redes, o artista consegue transmitir conhecimentos que, mesmo que você já saiba, trarão algum novo ensinamento devido a forma singular que o rapper interpreta os mais variados assuntos. Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem, portanto, não poderia ser qualquer coisa longe disso.

O documentário de quase 90 minutos traz os bastidores do marcante show de AmarElo, seu terceiro disco de estúdio, no Theatro Municipal de São Paulo, junto a uma verdadeira aula de história sobre a importância da população negra na construção da arte, da cidade e de tudo mais que influenciou Leandro Roque de Oliveira a se tornar Emicida. Perpassando, especialmente, os últimos 100 anos da história negra no Brasil, o filme dirigido por Fred Ouro Preto alterna entre como cada música do disco foi criada, com imagens inéditas de várias etapas da produção e recheada de grandes artistas, e narrações de Emicida tanto sobre a criação das canções quanto sobre questões históricas que influenciaram em sua concepção.

Uma das ideias mais fortes na obra gira ao redor do pertencimento. Há um momento na fita que, enquanto vemos registros históricos da época, Emicida narra sobre como as gerações de negras e negros do passado trabalharam ativamente na construção do Theatro Municipal de São Paulo e como essas pessoas foram sendo proibidas de adentrar o espaço. O Centro da capital paulista, antigamente composto em grande parte pela população negra, viu essas pessoas serem “empurradas” cada vez mais para a periferia em uma clara tentativa de embranquecimento e elitização da região. Um evidente esforço racista de limitar o acesso dessas pessoas a um importante espaço cultural que sequer existiria sem sua participação. Por isso, o cantor demonstra uma fixação tão grande em realizar seu show nesta localização. Em meio a falas sobre como familiares, amigos e conhecidos jamais pisaram no local antes daquela data, vemos diversas pessoas da plateia, majoritariamente negras e muitas em meio a lágrimas, cantando a plenos pulmões e representando o que Emicida diz sobre a importância de ocupar e sentir-se pertencente àquele espaço. Um espaço há tanto tempo proibido de maneira criminosa.

Se demonstrar a importância de ocupar os locais que foram negados integra a essência do documentário, a interessante ligação entre samba e rap, também. Dois ritmos historicamente marginalizados são mostrados como determinantes na identificação de um povo e, além de arte, uma forma de resistência em séculos diferentes. Se hoje o samba alcança todos os lugares e possui alguns dos maiores nomes de nossa música, é porque resistiu a grandes perseguições e proibições no passado (a sequência que aborda a criminalização do gênero e de seus praticantes, os enquadrando como vadiagem, explicita isso). Da mesma forma, o rap enfrentou e enfrenta os mesmos paradigmas e preconceitos de seu antecessor, fazendo com que seja visto com bons olhos há poucos anos (e ainda com uma parcela de resistência considerável). Não à toa vemos Emicida referir-se a nomes pioneiros no samba, como os Oito Batutas, como “hip-hop antes do hip-hop”. Tudo o que o rap e seus artistas passam hoje, desde o preconceito, passando pela musicalidade até o reconhecimento, é um caminho já trilhado pelo samba e com protagonismo do mesmo povo (talvez seja justamente essa experiência passada pelas gerações que possibilitam ao rap ocupar um lugar que um dia o samba ocupou).

E como se tudo isso não fosse o bastante, Emicida faz questão de pontuar o lado de movimentos sociais e intelectuais e de sua importância em todo o processo de concepção do espetáculo e de si mesmo. Provas disso são a cena com a presença de militantes do movimento negro que lutaram durante a ditadura militar sendo reverenciados por toda a plateia, tal qual referências a pensadores negros como Abdias do Nascimento, Angela Davis e Lélia Gonzalez

Produzido pela Netflix em parceria com a Laboratório Fantasma, empresa fundada por Emicida e seu irmão, Evandro Fióti, o filme faz um incrível levantamento histórico sobre a população e cultura negra nos últimos 100 anos e busca resgatar o sentimento de pertencimento e os espaços físicos negados a pessoas com tanto ou mais direito de estar ali que qualquer outro. O ditado iorubá “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje” citado pelo músico é a representação perfeita de tudo o que o show e a película pretendem passar. A pressa é tamanha porque os problemas são antigos e a vontade de resolvê-los é enorme. Não haveria Emicida sem Lélia Gonzalez. E o de amanhã não existiria sem Emicida.

Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem — Brasil, 2020
Direção: Fred Ouro Preto
Roteiro: Toni C
Elenco: Emicida, Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho, Pabllo Vittar, Majur, MC Tha, Marcos Valle, Henrique Vieira, Fabiana Cozza, Ruth de Souza, Lélia Gonzalez, Wilson Simonal, Abdias do Nascimento, Angela Davis, Wilson das Neves, Leci Brandão, Mário de Andrade, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Jorge Aragão
Duração: 89 min.

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