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Crítica | Emmanuelle (1974)

Prometeu erotismo mas entregou violência disfarçada de filosofia sexual.

por Luiz Santiago
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Não deve ser muito grande a parcela de brasileiros, especialmente homens, crescidos entre os anos 1980 e 1990, que não tenha passado pelo evento canônico de conhecer (ou ser proibido de conhecer) a grandiosa Emmanuelle. Este primeiro longa da cinessérie foi impedido de estrear nos cinemas nacionais pela censura, sendo liberado apenas em 1980, quando finalmente pôde ser exibido sob o título Emanuelle, a Verdadeira. Na televisão aberta, demoraria mais uns 15 anos para a grande estreia, pois a personagem se tornaria a aguardada e comentada atração do Cine Privé da Band, que surgiu em 1995, substituindo a Sexta Sexy, criada em 93. Ficar acordado e escondido para ver Emmanuelle era a aventura, e não há dúvidas de que, para milhares de meninos, esta foi a primeira experiência com erotismo (o algo similar) em imagem-movimento, daí o peso nostálgico e fundador que essas produções e sua protagonista ganharam no imaginário masculino por aqui.

Emmanuelle surgiu na literatura francesa, em 1959, numa edição clandestina (por motivos de censura ao erótico) escrita por Emmanuelle Arsan, pseudônimo de Marayat Rollet-Andriane. Narrada em primeira pessoa, a história acompanha uma jovem francesa, casada com um diplomata, que vive intensamente sua liberdade sexual, especialmente durante sua estadia na Tailândia. Só em 1967 é que a obra foi publicada de maneira oficial, e o sucesso foi imediato, chegando aos cinemas em 1974, sob direção de Just Jaeckin. A propósito, o filme italiano de 1969, Eu, Emmanuelle, não tem a ver com a obra de Arsan. É fato que se trata de uma produção com fulgor sexual, mas, mesmo nesse aspecto, se difere das películas inicialmente estreladas por Sylvia Kristel, sendo o título, neste caso, uma coincidência.

O objeto desta crítica é a produção francesa de 1974, um filme que passa por uma mudança drástica de qualidade em seu desenvolvimento. Na meia hora inicial, o que temos é um projeto com todos os tiques e cacoetes conhecidos do softcore, mas com uma qualidade geral impressionante para uma obra que tem como objetivo apenas mostrar a nudez feminina e simular cenas de sexo. A direção de arte é notável, adotando uma linha de “exagero brega” que cai como uma luva para a proposta; os figurinos, tanto masculinos quanto femininos, são muito bem pensados; e existem boas tomadas externas em diversos lugares da Tailândia, servindo de integração competente entre as cenas. Até certo ponto, o produto é passável: seus diálogos raros como pires e a sua mais completa falta de coesão narrativa são, de certa maneira, minimizados pela intenção primordial. A coisa começa a ficar problemática quando a má direção e o texto afetam diretamente esse aspecto erótico da obra.

No fio quase inexistente de roteiro que a produção nos oferece, existe um ensaio de discussão sobre o erotismo e a liberdade sexual de homens e mulheres dentro e fora de um relacionamento — eis aí um choque para quem acha que a ideia de poliamor e não-monogamia é coisa da Geração Z. Acho até interessante que a hipocrisia do esposo, vivido com graça por Daniel Sarky, é exposta, criticada e modificada, com ele tendo que engolir o ciúme e realmente dar a liberdade sexual que sempre alardeou conceder à esposa — uma liberdade da qual ele também goza, por sinal. Mas o papo sobre erotismo não vai adiante, pelo menos não com o mínimo de sentido em relação a esta palavra. Até a entrada de Mario (Alain Cuny) em cena, podíamos até ver a obra como o básico softcore com mulheres lindíssimas (incluindo a magnética Sylvia Kristel no papel principal) e um tatear de assuntos organizados em esquetes dramáticas com o mínimo valor, como o jogo de gato e rato entre Emmanuelle e Bee ou as conversas sobre traição e desejo em diferentes situações.

Mas aí passamos a observar como esse tão falado erotismo é descaracterizado pela produção. Primeiro, porque são raros os momentos em que a câmera dá uma atenção genuinamente erótica às mulheres. No todo, a coisa gira entre bizarro, exótico, cômico (impossível não rir de olhos arregalados na cena da vagina fumante) e a exposição simplória, mas inofensiva, da nudez feminina, trazendo beleza envolvida e cuidado da direção em brincar com isso, como na cena em que Emmanuelle nada pelada na piscina ou no primeiro encontro dela com Marie-Ange (Christine Boisson) — esta, sim, uma sequência que se preocupa em fazer jus à palavra erotismo, assim como o primeiro contato lésbico, na quadra de squash, entre Emmanuelle e Ariane (Jeanne Colletin). Mas notem que todo o contato sexual das mulheres com os homens, ao longo de todo o filme, são mal dirigidos e quase visualmente grotescos. Onde há erotismo aí?

E tudo fica pior (na verdade, a obra é estragada por completo) quando Mario começa a abrir a boca para falar as coisas mais sem sentido sobre “o que verdadeiramente significa erotismo, prazer, sexo, contato entre corpos, desejo, ânsia libidinosa e atração“. Nada do que o personagem diz faz sentido, nem mesmo dentro de um pensamento tão torto quanto o dele, e a coisa desanda totalmente quando ele leva essas “ideias” para a prática, fazendo Emmanuelle ser estuprada e abusada por homens desconhecidos, deixando claro que está educando-a para “o que é a verdadeira elevação pulsante do corpo em êxtase“. É nojento, execrável e ridículo, tudo ao mesmo tempo.

Não há dúvidas de que Emmanuelle tem bons momentos e que o objeto de desejo exibido na tela é, até certo ponto, tratado de maneira interessante pela direção, a julgar pela lógica/proposta da produção, é bom deixar claro. Mas a partir do ponto em que o texto quer dar palestrinha filosófica e teorizar profundamente sobre o que é erotismo e todos os outros termos ligados à libido, o filme muda de figura: a qualidade despenca e inúmeras coisas indefensáveis e repudiáveis passam a ser vendidas como aceitáveis e necessárias porque possuem um objetivo “educacional” para a protagonista, que “precisa perder seus limites e conhecer  que é o verdadeiro prazer“. É inacreditável que uma película que deveria elevar ao máximo a feminilidade, a nudez e a potência sexual femininas, termine arranjando justificativas supostamente professorais e quase místicas para jogar displicentemente com a violência de gênero. Podre. Simplesmente podre.

Emmanuelle (França, 1974)
Direção: Just Jaeckin
Roteiro: Jean-Louis Richard (baseado na obra de Emmanuelle Arsan)
Elenco: Sylvia Kristel, Alain Cuny, Marika Green, Christine Boisson, Daniel Sarky, Jeanne Colletin, Gabriel Briand, Gregory, Yves Rousset-Rouard, Robert Capia, Nicole Maurey, Annie Savarin, Louis-Jacques Rollet-Andriane, Jacques Arndt, André Lacombe
Duração: 94 min.

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