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Crítica | Ennio, o Maestro

Um documentário sobre a jornada de um dos maiores compositores do século XX.

por Luiz Santiago
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A música é uma arte poderosa. Uma das linguagens Universais mais ricas que fomos capazes de formalizar, e que faz parte de toda a nossa vida, acompanhando, moldando, marcando momentos bons e ruins da nossa existência. No cinema, a música sempre esteve presente, desde o período silencioso, com execuções ao vivo de partituras. Após a introdução formal do som, em 1927, o papel da trilha sonora se tornou cada vez mais importante em uma produção cinematográfica, e foi durante os anos 1930 que os primeiros grandiosos exemplos de composições e teorias sobre a música no cinema apareceram. Entre os anos 1930 e 1950, muitos compositores tornaram-se icônicos representantes de qualidade dramática, de sensibilidade e de criação de atmosferas para os filmes, nos mais diversos gêneros. Na década de 1960, porém, a música para cinema iria sofrer uma grande transformação, em parte por conta das mudanças históricas então em andamento; o impacto das correntes artísticas inovadoras (como os “Cinemas Novos” em diversos países) e uma visão menos engessada de se conceber a Sétima Arte. E outra parte, por conta da chegada de um jovem arranjador a este formato. Seu nome era Ennio Morricone.

O cineasta Giuseppe Tornatore — amigo e um dos companheiros de trabalho do compositor — iniciou a produção de Ennio, o Maestro em 2015, quando a principal entrevista com Morricone (então com 87 anos) começou a ser gravada. O documentário é uma homenagem à longa carreira do maestro, que conta com 528 trilhas sonoras (!) assinadas para grande e pequena tela, além de uma colossal lista de composições clássicas; dentre elas, uma ópera, uma missa, 15 concertos para piano, diversas composições para coral, peças sinfônicas e concertos de câmara (normalmente acompanhados por voz). O filme tem uma base narrativa simples e cronológica, principiando pela vida humilde da família Morricone e de como Ennio foi forçado pelo pai (trompetista de uma banda) a estudar trompete no Conservatório e seguir a carreira de músico. Há uma certa angústia nesses primeiros momentos, porque não era o que Ennio queria fazer, e depois que o pai ficou doente, ele precisou garantir o sustento da casa tocando à noite e seguir estudando durante o dia, o que fez com que perdesse o gosto pelo trompete. Isso terá, inclusive, um curioso impacto no início de sua carreira, que não contará com solos ou grande destaque para o instrumento, algo que só viria a mudar a partir de 1963, quando ele compôs a sua primeira trilha para um faroeste: Duelo no Texas, de Ricardo Blasco.

O diretor não subestima o público. As falas de Morricone sobre os detalhes musicais de sua obra são exibidas sem cortes desnecessários e não existem elementos didáticos “traduzindo” o que o maestro diz. Em vez disso, a edição alterna essas falas mostrando para o espectador as partituras e reproduzindo as cenas dos filmes ou clipes dos cantores com as faixas que receberam arranjo de Morricone. A construção da carreira do homenageado, aliás, é muito bem estruturada aqui, passando de seus primeiros anos estudando música, para a fase de composição e regência e o início de uma luta (especialmente com seu mestre Goffredo Petrassi) que duraria décadas para se dissipar: a oposição que se fazia, entre os músicos clássicos italianos, entre “compositores sérios” e “aqueles que faziam sub-música para cinema“. Morricone começou a ganhar dinheiro como compositor de arranjos para diversos cantores da TV e do rádio, e foi rápida a sua passagem para o cinema, primeiro com uma pequena orquestração para o filme A Morte de um Amigo (1960), para a qual ele não foi sequer creditado. Mas quem leva o título oficial de estreia de Morricone na composição para as telonas é O Fascista (1961), a primeira de 11 parcerias que ele realizaria com o diretor Luciano Salce.

Para acompanhar a construção e transformação de um trabalho ou estilo artístico, penso que o melhor tipo de abordagem é realmente a cronológica, pois ela nos dá a oportunidade de não apenas entender a contextualização histórica que permitiu as mudanças do artista, como também a maneira como ele foi executando e brigando por essas mudanças. O que ocorre com Morricone é que seu salto dentro da música acontece, de forma módica, antes mesmo de ele entrar para o cinema. O homem já era um bem visto e requisitado arranjador, revolucionando, no mínimo em nível continental, a forma como o acompanhamento musical era criado nas canções pop. Apenas três anos depois de sua estreia oficial como compositor cinematográfico, e já tendo passado por trabalhos de destaque como O Basilisco (de Lina Wertmüller, que infelizmente é cortada praticamente por completo do filme, com um único depoimento que dura 10 segundos), As Freiras (de Luciano Salce) e Antes da Revolução (de Bernardo Bertolucci); além de dois faroestes, que assinou como Dan Savio (o já citado Duelo no Texas e As Pistolas não Discutem), Morricone encontrou imensa fama e projeção mundial.

Sergio Leone foi colega de escola de Morricone, e em Por Um Punhado de Dólares, fecharam a primeira de 8 parcerias que teriam, além de uma amizade que, sem ser hiperbólico, transformaria a maneira de se compor trilhas para faroestes. O longa de Tornatore, sabiamente, dedica bastante tempo a essa parte da carreira do homenageado, porque é com a Trilogia dos Dólares que ele começa a alterar o jogo, trazendo experimentações, caminhando entre a música clássica, a música concreta e a música minimalista, sem contar os flertes com padrões ou estilos cobiçados no gênero, como a belíssima revisão que ele faz do Degüello, na versão de Dimitri Tiomkin para Onde Começa o Inferno (Rio Bravo). Desse bloco do filme em diante, o espectador presencia uma verdadeira sequência de transformações executadas por Morricone, principalmente depois de Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, que é quando o compositor embarca numa proposital teia de música experimental, reformulando a ideia do que se imaginava para as trilhas sonoras (a segunda vez que ele fazia isso em sua carreira, mas agora não apenas dentro do faroeste).

Em observação à obra do maestro, o documentário não deixa a desejar em nada. Há a passagem pela fase de Morricone compondo para os gialli e para filmes de Hollywood, chegando até à parceria com Tarantino, em Os Oito Odiados, uma trilha muito especial porque era o retorno do maestro ao western depois de muito tempo. Desse ponto em diante, o documentário entra em sua fase de encerramento, e é aí que algo parece não estar certo. Temos a impressão de que falta algo, de que a sequência de eventos tão incrivelmente adequada à narrativa, perde o seu fluxo e não integra-se bem às cenas dos “anos finais do compositor“. E o problema não é a escolha dos eventos, porque é muito importante fechar uma obra desse porte mostrando o máximo de caminhos artísticos de quem se está homenageando. Com isso em mente, as imagens das turnês do maestro pelo mundo (leia aqui a nossa crítica para o concerto dele em São Paulo; aqui, a nossa crítica para o concerto dele em Verona; e aqui a nossa crítica para o concerto dele em Paris), a sua influência através das gerações e os muitos trechos de composições clássicas dele são importantes como complemento. Mas elas destoam consideravelmente de tudo o que tivemos antes na obra. Dá a impressão que é uma parte dirigida por outro cineasta, tamanha a disparidade de abordagem e da condução da montagem nesse trecho final.

Ennio, o Maestro é um filme repleto de excelentes surpresas, muita música inesquecível e uma dose cavalar de nostalgia para qualquer cinéfilo que se respeite. A obra de Ennio Morricone perpassou 50 anos da História do cinema e abalou toda a estrutura do que a música para a Sétima Arte significava. A grande erudição do compositor aliada à sua vontade e coragem de experimentar, através dos sons, fez de sua carreira um notável laboratório com obras para todos os gostos e também para apresentar, aos interessados, as mais diferentes formas de alinhar filme e música. Exceto por seu trecho final, abordando os últimos passos do maestro, a película é uma viagem de imensa satisfação para os ouvidos… e para a alma.

Ennio, o Maestro (Ennio, The Maestro / The Glance of Music) — Itália, Bélgica, Países Baixos, Japão, China, Alemanha, 2021
Direção: Giuseppe Tornatore
Roteiro: Giuseppe Tornatore
Elenco (depoimentos): Clint Eastwood, Quentin Tarantino, Oliver Stone, Terrence Malick, John Williams, Kar-Wai Wong, Hans Zimmer, Barry Levinson, Dario Argento, Ennio Morricone, Bernardo Bertolucci, James Hetfield, Bruce Springsteen, Quincy Jones, Roland Joffé, Marco Bellocchio, Lina Wertmüller, Enzo G. Castellari, Phil Joanou, Mike Patton, Joan Baez, Mychael Danna, Liliana Cavani, Carlo Verdone, Laura Pausini, Giuliano Montaldo, Roberto Faenza, David Puttnam, Gianni Morandi, Mario Caiano, Nicola Piovani, Vittorio Taviani, Ornella Vanoni, Paul Simonon, Alessandro Alessandroni, Zucchero, Franco Piersanti
Duração: 156 min.

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