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Crítica | Enraivecida na Fúria do Sexo

por Leonardo Campos
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Depois de ensaiar o colapso de uma sociedade tomada pela selvageria num experimento insano de um médico que decidiu bancar o cientista louco, David Cronenberg retornou com Enraivecida na Fúria do Sexo, dois anos após o lançamento de Calafrios. A sua abordagem, corajosa, não deu atenção aos comentários negativos oriundos da crítica canadense que na época, não comprou as suas propostas subversivas. Desta vez, ele ainda ousou um pouco mais. Trouxe a atriz pornô Marilyn Chambers para o protagonismo feminino de sua nova trajetória sobre o corpo como espaço para experimentações científicas que nem sempre saem de acordo com o que se é proposto. Com referências diretas ao clássico A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero, a produção flerta com a transformação de uma sociedade amena num caos gigantesco após a presença de um parasita que transmite uma versão da “raiva” pelo sangue. O contexto sexual, mais uma vez, se faz presente e permeia todo o tecido narrativo. O momento era propício para a instalação de mais uma história com paranoia, afinal, falamos dos anos 1970, era da histeria coletiva e de outras tantas crises oriundas da ansiedade promovida pelas mudanças sociais e política que não findavam.

O contexto sexual, mais uma vez, se faz presente e permeia todo o tecido narrativo. O momento era propício para a instalação de mais uma história com paranoia, afinal, falamos dos anos 1970, período da histeria coletiva e de outras tantas crises oriundas da ansiedade promovida pelas mudanças sociais e política que não findavam. Enraivecida na Fúria do Sexo traz para o centro nervoso da narrativa algumas discussões sobre os limites do corpo humano e os impactos da ciência, um campo que diante de todas as revoluções tecnológicas do século XX, praticamente virou o humano do avesso, tornando-o invisível com cirurgias cada vez mais complexas e invasivas. A tecnologia, extensão do homem nunca vista até então, algo que será tratado com maiores detalhes na relação entre as teorias de McLuhan e Videodrome – A Síndrome do Vídeo, mudou também a forma como nos habituamos a gerenciar as coisas cotidianamente.

Após quatro décadas de seu lançamento, torna-se fascinante observar como os filmes de Cronenberg são demasiadamente atuais. O caos social, o medo do “outro”, a parcela porca da mídia que busca lucrar em torno da pandemia para reforçar o chamado “pânico social”, dentre outros detalhes desta narrativa que ainda não demonstra uma evolução na estética do cineasta, algo a mudar apenas nos anos 1980, mas reforçava a sua ousadia temática em abordar tópicos considerados perigosos e desagradáveis, mas que ainda assim, seriam sessões de psicanálise coletiva, meios de expurgar as ansiedades e temores de uma era que tão incerta como o cenário mundial em 2020, mergulhado nas suposição do mundo pós-covid19.

Dirigido por Cronenberg e lançado em 1977, “Enraivecida na Fúria do Sexo” também foi escrito pelo próprio cineasta, mais uma vez na condução da interpretação audiovisual de seu material dramático. O filme abre com um acidente de moto. Rose (Chambers) e Hart (Frank Moore) formam o casal que durante uma travessia rumo ao prazer do entretenimento, mas são interrompidos pela situação inesperada. Por sorte/coincidência do roteiro, o acidente ocorre próximo a uma clínica de cirurgia plástica, comandada pelo doutor Dan Keloid (Howard Pyshpan). O rapaz sofre apenas de uma fratura nas mãos e no ombro. Já Rose sofre queimaduras ao ficar debaixo de um carro em chamas. Eles serão socorridos ali mesmo.

Tendo como foco um método experimental chamado enxerto morfogeneticamente neutro, ele faz a aplicação na moça. A ideia é que ela possa recuperar partes da pele destruída e ainda ter o bálsamo necessário para algum órgão atingido gravemente. O que ocorre, no entanto, é que o experimento vai além do planejado e após um mês em coma, Rose acorda aos prantos, acalentada por Llyod Walsh (Roger Periard), outro paciente que ao dar o devido amparo, é ferido por algo que sai do corpo da jovem. Diferente do parasita de Calafrios, espécime que tinha uma aparência de fezes, o “monstro” aqui se manifesta na axila da protagonista do horror, mulher que expele um ferrão ao contaminar as suas vítimas que se transformam em zumbis predadores perambulantes por Montreal. Sedenta por sangue, Rose preda de animais aos humanos.

A transmissão sanguínea cria a sensação de pavor generalizada e as vítimas não ganham sequer a piedade de pessoas que acreditam na necessidade de extermínio total, independente da espera por uma possível cura. A situação fica ainda mais fora de controle com o número cada vez maior de contaminados. Ao ser ajustada cirurgicamente, a personagem se torna uma aberração humana, fruto de um experimento que deu errado, tema posterior em outras obras-primas do cineasta, com destaque especial para A Mosca e Gêmeos – Mórbida Semelhança. Questões como moralidade, religião e ética são solapadas diante da necessidade do governo em tomar decisões para a contenção do caos pandêmico. O tentáculo fálico de Rose promove a deformação no corpo da vítima, cenário que precede as suas respectivas mortes. Para alguns, Enraivecida na Fúria do Sexo e Calafrios são antecipações da AIDS, meio de contágio que causou horror semelhante alguns anos depois do lançamento destes filmes. Para o cineasta, é uma possibilidade interpretativa, mas nada premonitório e sobrenatural, algo que a pessoa que vos escreve também concorda. É uma coincidência, rica de subtexto, nada mais.

Maior que seu antecessor, mas ainda um ensaio para a futura “estética de Cronenberg”, Enraivecida na Fúria do Sexo trouxe Rene Verzier na direção de fotografia, setor que cumpre as suas funções de maneira intensa, com quadros calculados para ampliação dos momentos de grande tensão, recurso ampliado pela edição também eficiente de Joe Elsner, responsável por dar ritmo ao processo de condução do terror espalhado pela personagem de Chambers. Ivan Reitman, na trilha sonora, compõe uma textura funcional, mas ainda sem o mesmo tom encontrado na seara da musicalidade com a futura parceria entre o cineasta e Howard Shore. A maquiagem ficou por conta de Joe Blasco, parte integrante do setor de efeitos especiais comandado por Al Grislwold. Eles formam uma equipe que consegue dar conta das situações apresentadas pelo roteiro, da contaminação ao caos espalhados nas cenas escatológicas, em especial, o ferrão bizarro que sai da axila da “predadora” durante os seus ataques.

Ademais, além de funcionar como entretenimento para as plateias de horror, o segundo filme de Cronenberg para as exibições em salas de cinema consegue criar o invólucro diversão com crítica. É uma embalagem que traz cenas de ação empolgante, momentos de humor e sexo, às vezes escancarado, noutros pontos, mais pulsantes. Tudo isso, associado ao texto e direção voltados ao seguinte tópico reflexivo: a humanidade e a sua existência que não lhe permite uma total compreensão do fenômeno da morte. Podemos até nos apegar aos dogmas religiosos, imaginar algo de acordo com descobertas científicas, mas a morte, diferente do surgimento da vida humana, diferencia-se por todos os seus mistérios e profundas incertezas. Junto a isso, David Cronenberg flerta com a ciência e seus impasses, numa análise do futuro do corpo humano diante das intervenções promovida pela evolução assustadora da tecnologia. Ontem. E hoje.

Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid) — Canadá, 1977
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Marilyn Chambers, Frank Moore, Joe Silver, Howard Ryshpan, Patricia Gage, Susan Roman, Terry Schonblum, Gary McKeehan, Miguel Fernandes
Duração: 100 min.

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