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Crítica | Enrolados

por Gabriel Carvalho
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“Brilha linda flor
Teu poder venceu
Traz de volta já
O que uma vez foi meu”

Como render dinheiro e críticas positivas através de um uso tecnológico supostamente indominável, destinado ao fracasso mediante um presumido anacronismo? O ancião das animações querendo mexer com os brinquedos dos calouros. A Disney demorou para acertar com uma animação criada totalmente em computador, qualidade que seus concorrentes, encerrando algumas franquias extremamente lucrativas – a exemplos, o lançamento de Shrek Para Sempre e Toy Story 3 -, já dominavam com maestria na época do lançamento de Enrolados. Um fracasso de crítica e público sucedendo outro fracasso de crítica e público contemplou os anos posteriores ao saudoso renascimento da empresa, já tão antigo quanto o tempo quando Enrolados conseguiu render ao estúdio, enfim, os louros da crítica e os lucros do público, justamente inserindo-se no escopo que obras como O Galinho Chicken Little – subestimado -, A Família do Futuro e Bolt – Supercão fracassaram miseravelmente. O ótimo A Princesa e o Sapo – com a primeira princesa negra da Disney – precisou recorrer à animação tradicional para principiar uma nova geração de longas-animados, uma retomada. Já Enrolados sedimentou o percurso com muita decência.

O novo século e sua consequente maré subversiva, com histórias sendo contadas invertidas, foi repensado, criando uma premissa menos óbvia para desconstrução. Rapunzel (Mandy Moore) não era uma princesa desconhecida à época do lançamento desse seu longa-metragem, porém, ao mesmo tempo, contrariava completamente a ordem de mulheres pertencentes a minorias ou etnias não-caucasianas, como era o caso de Pocahontas, Mulan, além do já citado A Princesa e o Sapo. O estúdio recorre justamente à princesa mais famosa, dentre as que ainda não haviam sido adaptadas pela empresa, para estrelar o primeiríssimo longa-metragem com princesas a usar dessa tecnologia como mote principal para sua criação artística de universo. O tradicionalismo encontra as novidades de um novo século. A situação não é completamente aleatória: um dos grandes sucessos desses primeiros anos com animações integralmente computadorizados, Shrek subvertia completamente o sub-gênero de princesas, optando por transformar sua donzela em perigo, presa em uma torre, num ogro. A opção da animação, nesse outro caso, é pela contraposição de certos valores, de um retorno ao clássico para encontrar o novo.

A jovem não sofre dos males da guerra ou da pobreza. A Disney resgata os sonhos em sua esfera menos complexa e, provavelmente, mais pura. O maior símbolo dessa ruptura de arquétipos, que adentram um território familiar, com castelos enormes, mechas douradas e megeras como antagonistas, é, possivelmente, a frigideira que a protagonista carrega em suas mãos por grande parte do filme. A servidão de outrora – um símbolo de uma espécie de escravidão domesticada – é destruída com a insistência de Rapunzel, até então obrigada pela sua “mãe” a continuar no castelo que se encontra desde que se conhece por gente, a encontrar os balões, recorrentemente acendidos nos seus aniversários, que sempre sonhou encontrar. Os sonhos são, novamente, o começo das histórias que a Disney sempre amou contar. Os personagens sempre engraçados se juntam à narrativa – cansando ocasionalmente -, assim como o mocinho, certeiro e marcante. A tecnologia permite um espetáculo visual nunca antes visto na cronologia da empresa, consolidando seus primeiros objetivos com a animação em computador, principalmente no trabalho com a iluminação, decorrente dos balões, além de, obviamente, com os cabelos, cerne imagético da obra.

Enrolados é genuinamente interessante em relação aos contrastes que remete com a sua produção, contrapondo os ideais antigos da empresa com os seus ideais modernos, abrangendo o “ineditismo tecnológico” para contar uma história que já fora contada inúmeras vezes antes, mas, agora, de uma maneira substancialmente diferente. A animação, em seus termos visuais, remete a um classicismo estético, sem residir em um momento espaço-temporal distante dos icônicos – para alguns ultrapassados – primeiros contos de princesas abordados pelo estúdio, como Branca de Neve e os Sete Anões ou Cinderela. Os castelos. As coroas. Os vestidos. As florestas densas. Os mesmos maneirismos de outros contos típicos são visíveis, no entanto, estão a serviço de uma Disney reencontrando à realeza que deixara há tempos atrás, sendo retomada, porém, juntamente a pensamentos repaginados, modernos. Uma protagonista que encontra-se entre a personalidade forte e a personalidade ingênua, sonhadora. Enrolados basicamente mistura os dois mundos, até mesmo com as suas figuras masculinas. Frozen – Uma Aventura Congelante, em sua própria forma, repetiria as intenções presentes no processo criativo que envolve Enrolados.

As reconfigurações encontram outros meios. A chegada de um personagem masculino, o galanteador Flynn Rider (Zachary Levi), é acompanhada por uma desnorteação de seu princípio idiossincrático: aparentemente um valente inquestionável, perversamente charmoso, incorruptível na sua própria corrupção de virtudes e deveres, seja qual for o passado de seu presente – importante para o enredo, em contrapartida. Robin Hood encantava a sua amada, Aladdin causava sentimentos parecidos com Jasmine, enquanto Flynn, ao aparecer para a protagonista, é recebido com uma frigideira no seu rosto. A competente jornada desse anti-herói, juntamente a seu respectivo desenvolvimento, entende a necessidade pela desconstrução do seu comportamento heroico clássico, tornando-o vulnerável, embora esse viés de sua criação como personagem já estivesse interessantemente deturpado pelo personagem ser um criminoso, não um salvador moralmente inquestionável. A mesma premissa de abertura a sentimentos em personagens antes fechados na “masculinidade”, que nunca seria comprometida originalmente, apresenta-se com os demais bandidos introduzidos no filme, que, assim como os heróis, possuem sonhos e cantam.

A permissão a sonhar e não ser um indecifrável cofre, quase desumano, porque a vulnerabilidade, no final das contas, nos torna ainda mais propensos a resistir à vida, possibilitando-nos sermos especiais mesmo sem nenhuma especialidade mística. A conclusão do longa-metragem retira a magia de sua protagonista, ao mesmo tempo que permite a magia sugerida encontrar o seu ápice. Enrolados não é uma obra que questiona todos os parâmetros existentes desde as antiguidades dos romances dos contos de fadas, no entanto, compreende uma quebra com estereótipos e clichês em uma narrativa que, por outro lado, não desiste de, ainda assim, caminhar por certas previsibilidades – a solução para o sacrifício de certo personagem não é minimamente antecipada, soando enormemente contraditória. O protagonismo confrontando o antagonismo também não se complica – a superfície apresentada na primeira cena do filme continua. A relação da mãe e da filha permanece sendo a mesma, acerca de um puro interesse, do início ao fim da animação, enquanto uma reconstrução desse relacionamento poderia aprofundar uma narrativa que se engrandeceria com um pouco mais de enrolamento, mesmo com a mesma magia.

Enrolados (Tangled) – EUA, 2010
Direção: Nathan Greno, Byron Howard
Roteiro: Wilhelm Grimm, Jacob Grimm, Dan Fogelman, Mark Kennedy
Elenco: Mandy Moore, Zachary Levi, Donna Murphy, Delaney Rose Stein, Brad Garrett, Ron Perlman, Jeffrey Tambor, Richard Kiel, M.C. Gainey, Paul F. Tompkins, Nathan Greno, Byron Howard, Tim Mertens
Duração: 100 min.

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