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Crítica | Ensaio de um Crime

por Luiz Santiago
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Ensaio de um Crime é uma das obras notáveis de Luis Buñuel nos anos 1950, uma de suas películas mais livres da fase mexicana em termos de composição e toques psicanalíticos ou próximos ao mundo surrealista. O filme é a adaptação de um livro homônimo do escritor, poeta, dramaturgo e diplomata mexicano Rodolfo Usigli, considerado o pai do teatro mexicano moderno. Usigli era chamado de “o dramaturgo da Revolução Mexicana”, evento histórico presente em muitas de suas obras, não só as teatrais, mas também romances e alguns poemas. No caso de Ensaio de um Crime, a Revolução também está lá, no início da narrativa, como o ponto de partida para o evento que marcaria para sempre a vida do protagonista, o garoto Archibaldo de la Cruz.

A Revolução Mexicana teve início em novembro de 1910, e não há um consenso histórico sobre o seu término. Alguns historiadores elegem o surgimento da Constitución Politica de los Estados Unidos Mexicanos(1917) como ponto final do conflito; outros colocam a presidência de 6 meses de Adolfo de la Huerta (1920) como o verdadeiro motivo; também apontam a presidência do fundador do Partido Nacional Revolucionário (1924 – 1928) como ponto definitivo; e ainda há os que consideram todos os eventos políticos que persistiram no país até o início da década de 1940 como as verdadeiras motivações para o fim da Revolução. As divergências mostram o quão instável e complicada foi a política mexicana do período. Tais divergências também servem para traçarmos uma espécie de pano de fundo para Archibaldo de la Cruz, que cresceu em meio a todos esses eventos, posto que, no início do filme, quando é citada a Revolução, ele ainda é uma criança.

SPOILERS!

O pequeno Archi é filho único e muito mimado pela mãe. Seu maior desafeto é a babá, que é rígida com ele, obrigando-o a tudo o que uma criança não gosta: ter limites. Quando, em uma noite, ela inicia um conto sobre uma caixinha de música, uma fatalidade acontece. A babá é baleada acidentalmente pelos enfrentamentos revolucionários e Archi acredita que foi ele quem matou a mulher, apenas por ter desejado. Tem início então um dos mais cruéis (e maravilhosos) tratamentos que Buñuel deu a um de seus protagonistas, o do assassino que nunca matou ninguém.

Archibaldo tem a ideia fixa de que é um assassino, culpando-se por isso. Seu pensamento religioso é um dos pontos que lhe trazem culpa, algo que ele confessa esporadicamente, sempre em oportunidades únicas. Seu desejo de matar junta-se ao erotismo e à dificuldade que ele tem de relacionar-se mais intimamente com o sexo feminino, não por ser homossexual ou misógino, mas porque sempre é tomado por construções mentais tétricas, todas envolvendo a morte da parceira, o que sempre acaba acontecendo pelas mãos de outra pessoa. Todo o preparo realizado por Archibaldo é fracassado pelo destino: a freira que ele deseja matar cai num poço de elevador, uma vamp polígama com quem sai uma noite é degolada por outro homem (provavelmente o amante) e por fim, sua noiva é baleada pelo namorado minutos após o casamento.

Buñuel já tinha dito certa vez que seu foco cinematográfico era o fracasso. Em Ensaio de um Crime, isso é perfeitamente visível. O ensaio acontece de verdade, mas o ato em si, nunca. E pior ainda, Archibaldo se culpa por esses crimes, tanto que acaba “confessando seus atos” ao juiz local, no que é gentilmente tomado por louco ou excêntrico e dispensado do interrogatório.

Além das questões internas, a narrativa do filme é soberba. Apenas ao final entendemos o verdadeiro tempo fílmico, e até esse momento, a película seguia em uma organização irretocável, tanto em direção quanto em roteiro. O deslize vem na última sequência, quando após a confissão ao juiz, Archibaldo se livra da caixinha de música – seu verdadeiro assassinato – e como num exercício psicanalítico se vê curado, ou pelo menos é isso que nos faz entender o diretor. Não vi nenhuma ironia no final feliz de Buñuel, e pessoalmente ainda conto com uma possível abertura para além da felicidade, já que não podemos ver o rosto de Archibaldo ao lado de uma mulher, na última cena, de modo que é impossível saber se ele realmente tinha planos para matá-la ou não, se bem que a trilha sonora alegre e a câmera distante – antônimos de todas as prequels de ensaios de crime que vimos durante o filme – nos indicam que tudo realmente estava bem.

  • Crítica originalmente publicada em 18 de maio de 2013. Revisada para republicação em 13/06/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

Ensaio de um Crime (Ensayo de un crimen) — México, 1955
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Eduardo Ugarte (baseado na obra de Rodolfo Usigli).
Elenco: Miroslava, Ernesto Alonso, Rita Macedo, Ariadna Welter, Andrea Palma, Rodolfo Landa, José María Linares-Rivas, Leonor Llausás, Eva Calvo, Enrique Díaz ‘Indiano’
Duração: 89 min.

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