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Crítica | Entrevista com o Vampiro

por Leonardo Campos
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Sensual e ousado, Entrevista Com o Vampiro é um dos melhores filmes que abordam o personagem que sabemos, atravessa uma longa tradição no desenvolvimento das sociedades prévias ao nosso universo contemporâneo. “Imortalizado” na virada do século XIX com o romance Drácula, de Bram Stoker, obra que podemos dizer, foi e ainda é a versão definitiva para tais monstros notívagos, sedentos por sangue, associados aos morcegos e conhecidos pela nobreza como escala social na qual estão inseridos, em 1994, essas figuras ganharam as telas do cinema numa história avassaladora para os padrões esperados de um filme com vampiros. A base para tudo isso era o romance homônimo de Anne Rice, publicado previamente, transformado em roteiro pela própria criadora do universo, texto regido por Neil Jordan, cineasta em ótima forma. Aqui, a luz é um dos únicos inimigos já conhecidos destas criaturas que estão dissociadas dos clichês semióticos envolvendo crucifixos, alho, água benta e outros elementos da tradição católica.

Em sua inversão de valores para os objetos mencionados, temos também uma história contada em primeira pessoa, abordagem filosófica de Anne Rice para apresentar uma proposta diferenciada para o exaurido personagem constantemente retomado ao longo dos desdobramentos da história evolutiva da linguagem cinematográfica, marco cultural do século XX. Nas palavras de Neil Jorna, um filme sobre “perda, punição e culpa católica”, dentre tantos outros temas tangenciais, abordados nos 103 minutos desta narrativa sobre o jornalista Malloy (Christian Slater), o responsável pela entrevista mencionada no título da produção. Ele é um personagem pouco explorado, sem o mesmo envolvimento na história e possibilidade de magnetismo com o público proporcionado pelas criaturas que se inserem na “história dentro da história”. Menos presente em cena que os demais, ele é o catalisador das memórias relatadas por Louis (Brad Pitt), um vampiro do século XVIII.

Ainda assim, a sua figura é essencial para permitir que possamos compreender a trajetória maldita destas figuras ficcionais que nem sempre fizeram parte de um clã, mas foram transformadas à revelia e precisaram atravessar as suas histórias imortais em processos adaptativos constantes, como testemunhas das transformações que fazem parte da evolução da humanidade. É uma extensa saga de amores, solidão, perseguições, etc. Logo na abertura, sabemos que Malloy está em busca de uma boa história para narrar numa próxima matéria e ao acaso, aborda Louis, um enigmático homem que lhe revela fatos nada comuns ocorridos desde as suas origens, algo que o remete ao século XVIII, em plena zona rural da Louisiana, acontecimentos situados numa nação ainda em construção, antes dos mais ardilosos conflitos bélicos que a transformaram numa potência econômica e imperialista em seus projetos de dominação global.

Ele conta que foi transformado em vampiro por Lestat (Tom Cruise), explora a história de Cláudia (Kirsten Dunst), uma misteriosa criança-vampira, além de narrar fatos que deixam claro a sua incapacidade de reconhecer elementos da própria natureza. Enlutado pela esposa que morreu no parto, Louis é um homem emotivo, mas consciente de que para viver, torna-se necessário matar. Louis precisa aniquilar o “outro” para garantir a sua sobrevida. No começo, ele recorre aos animais, sem coragem para beber sangue humano. Isso tudo, no entanto, é apenas uma questão de tempo, maldição permanente que para ele é o inferno, enquanto Lestat considera uma dádiva. É um instinto animalesco de sobrevivência, delineado pelo filme não apenas por traços do texto de Anne Rice, mas pela busca de Neil Jordan em compreender melhor o que aqui chamarei de “essência vampiresca”. Para dar conta de sua jornada, ele assistiu alguns documentários sobre vida selvagem e buscou no instinto de caça de algumas espécies da natureza, traços para inserção no desempenho dramáticos dos personagens de Entrevista Com o Vampiro, uma produção icônica também por trazer talvez uma das primeiras famílias com dois pais, afinal, não há como dissociar a relação de Lestat e Louis com Claudia e o que conhecemos como padrão de “célula familiar”.

Além de todas as subtramas bem conectadas, o filme nos apresenta, por meio do relato de Louis, o manipulador Armand (Antonio Banderas), figura predadora e ambígua que lidera o Teatro dos Vampiros. Assim, para narrar a sua história sobre tais “monstro”, representantes da “morte da religião”, os realizadores contaram com uma sofisticada equipe técnica, responsável pela exuberância estética de Entrevista Com o Vampiro. A maquiagem, supervisionada por Stan Winston, trabalhou bem a representação dos vampiros dentro de suas conhecidas características básicas, isto é, pele alva, uso de delineadores expressivos, associados aos figurinos de Sandy Poweel, setores que unificados, permitem que estes personagens “atuem dentro da própria encenação”, pois se observamos os seus respectivos contextos, Louis, Armand, Lestat e as demais criaturas da noite vivem da interpretação de papeis ao longo de suas jornadas. Eles precisam representar para garantir a permanência que não é mais trabalhada dentro de zonas territoriais góticas e distanciadas do pulsante ritmo das sociedades em constante evolução. Para ampliar a sensação de luxo deste ambiente, o filme conta com a execução sólida da trilha de Elliot Goldenthal.

Ainda sobre a maquiagem, importante ressaltar a colaboração nos efeitos especiais das cenas de morte, passagens que ganham também por terem não envelhecido, haja vista o uso destas estratégias, igualmente comuns no cinema mais atual. Se nas breves cenas contemporâneas, o espaço cênico exibe uma ornamentação urbana, com janelas que nos deixam observar com distanciamento e acompanhar pela audição sutil o que acontece do lado de fora do apartamento de Malloy, entrevistador que dialoga com Louis em pleno século XX, as cenas desenhadas pela memória viva do vampiro narrador são estabelecidas como um delírio visual para os espectadores. Dante Ferreti, renomado design de produção, gerencia o mergulho nos séculos anteriores, trabalho valorizado pelo também eficiente desempenho de Phillipe Rousselot na direção de fotografia, desde a iluminação com belíssimos contrastes entre sombras e luzes aos enquadramentos que valorizam o melhor do elenco talentoso. Sim, até Tom Cruise conseguiu se sair bem. Nada como um bom diretor para conduzir um ator e fazê-lo não ser eclipsado pelos demais membros da equipe.

Mantendo o olhar ainda no design de produção, Ferreti conduz a supervisão da cenografia de Francesca Lo Schiavo e da direção de arte de Malcolm Middleton, subsetores que capricham nos detalhes para nos fazer adentrar no clima da mixagem de tempos históricos que se desenrolam ao longo dos 103 minutos deste clássico moderno repleto de erotismo e sensualidade, bem como uma alta carga de homoerotismo, oriunda de todos os homens que fazem parte da narrativa, tanto do centro nervoso quanto das zonas dramáticas periféricas. Sobre outros destaques, temos Yvette (Thandie Newton) como uma das personagens coadjuvantes com participação breve, mas importante, além do Teatro dos Vampiros, companhia de artes cênicas que tem atores que fingem ser humanos, interpretes de vampiros. “Beba de mim e viva eternamente”: essa é uma das frases mais icônicas de Entrevista Com o Vampiro, constantemente mencionada em análises ou postagens que rememoram o filme e seu poder de penetração na memória cultural, universo continuado no interessante, mas desastroso A Rainha dos Condenados.

Ademais, no desenvolvimento de seus temas, o roteiro de Anne Rice é assertivo ao abordar todos os acontecimentos com detalhismo nas peculiaridades das necessidades dramáticas de cada personagem. Nas mãos de um diretor sem talento, Entrevista Com o Vampiro poderia ter se tornado um excessivo espetáculo de violência gratuita e sexualidade ambígua vulgarizada. Não é. E é isso que o torna fascinante. Uma história sobre alteridade, ponto de partida para o que na época foi chamado de “o novo vampiro”. Sem se orgulhar de seu comportamento, Louis é parte de um esquema manipulador de Lestat, enciumado pelo potencial de dominação estabelecido pela chegada de Armand. Ciúmes pela perda de território psíquico para flertar ou sentimento de ameaça por desejos sexuais recalcados? São questões para se debater e fiar extensas reflexões. É um filme que não é complexo na superficialidade de seu conteúdo visto como entretenimento, mas nas possibilidades interpretativas contextuais e de seus receptores, especialmente para uma observação diacrônica, inserida em nosso atual panorama de debates sobre identidade e gênero.

Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire – EUA, 1994)
Direção: 
Neil Jordan
Roteiro: Anne Rice
Elenco: Brad Pitt, Tom Cruise, Kirsten Dunst, Antonio Banderas, Christian Slater, Thandie Newton, Stephen Rea
Duração: 123 min.

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