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Crítica | Epa! Cadê o Noé?

por Lucas Borba
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Após a onda polêmica, com o perdão do jogo linguístico, que foi o filme Noé, de Darren Aronofsky, eis que a passagem bíblica da arca é, mais uma vez, revisitada pelo cinema. Dessa vez em uma animação infanto-juvenil. De fato, os dois filmes não poderiam ser mais diferentes.

Aqui não se fala, naturalmente, na diferença da abordagem adulta para a infantil, mas, mesmo se os dois longas fossem dirigidos ao mesmo público e considerando as diferenças temáticas de cada um, deixa-se claro, porém, que a animação não chega nem perto de atingir a qualidade do trabalho de Aronofsky. Afinal, contar uma história para adultos ou para crianças, ao contrário do que, pasmem, muitos ainda pensam, não deve acarretar queda de qualidade, de estímulo de um público para o outro, adequando-se tão somente a estratégia narrativa. Ora, não é por acaso que certas produções para crianças têm a capacidade de conquistar todas as idades.

Para começar, apesar de situar sua trama na já referida passagem bíblica, Epa! Cadê o Noé poderia se passar em todo tipo de outros contextos imagináveis sem que o roteiro, se fosse melhor explorado, perdesse minimamente o seu valor. O próprio Noé é apenas citado, não aparece em momento algum, tampouco qualquer ser humano. O foco são apenas os animais falantes, o dilúvio e a arca – sem Noé, como o título deixa bem claro -, tudo para que um tema específico seja abordado. Adivinhe qual? Justamente as diferenças, questão da qual iniciei falando nesta crítica, e sobre achar seu lugar no mundo. Irônico, não é mesmo? O tema não é nenhuma novidade no cinema ou em animações, mas aqui a passagem bíblica, pelos fatores já mencionados na contextualização e por outros mais, que ainda citarei, parece ter sido escolhida ao acaso pelos roteiristas, apenas por conveniência.

Explique-se: na trama, o leão, rei dos animais, convoca a bicharada para avisar que uma enchente está vindo e inundará o mundo todo. A única chance de salvação, claro, é a arca construída por Noé. O problema é que somente os animais que constam em uma lista podem entrar, mas Dave (voz de Dermot Magennis) e seu filho, Finny (voz de Callum Maloney), dois nestrians, não estão nela.

Vejam bem, a abertura do longa é interessante e cria uma falsa esperança de que ele será melhor do que realmente é. De modo objetivo, somos apresentados de cara aos nestrians e ao seu grande problema: não conseguem se adaptar a nenhum lugar e, por isso, mudam-se constantemente. Assim, chama a atenção, de início, como o dilúvio parece surgir tal qual um problema secundário em relação à instabilidade pré-existente entre pai e filho. Logo, no entanto, fica evidente que se trata não só de um falso artifício, mas da maior fraqueza do roteiro, sua redundância.

O problema da exclusão, da não adaptação dos nestrians a um ambiente, fica evidente desde o princípio e o fim do mundo só vem apresentar-se como uma ameaça para que a mesma problemática seja desenvolvida em uma circunstância adversa, mas que de modo algum se justifica plenamente. Isso porque o roteiro não consegue aprofundar a temática, torná-la séria aos olhos do público, de modo que mesmo a inundação não parece tão grave quanto poderia ser a mera luta da dupla para encontrar seu espaço, sem qualquer arca ou dilúvio na história.

Poderia se pensar, entretanto, que quando Finny, após entrar clandestinamente na arca com o pai, acaba, por distração, saindo dela com uma grymp da sua idade, Leah (voz de Ava Connolly), a coisa melhora, mas não é o caso. De um lado, os jovens fazem o possível para sobreviver a inundação crescente e retornar para a arca, e de outro, Dave e a raivosa mãe de Lea, Hazel (voz de Tara Flynn), tentam a todo custo encontrá-los. Só que nem a partir de então o texto se mostra disposto a manter o foco temático e se dispersa em piadas pastelonas, diálogos, aventuras e situações que pouco aludem necessariamente às diferenças.

Sim, vemos animais diferentes interagindo juntos, mas eventuais provocações são tão pouco levadas a sério pelos próprios personagens que o conflito mal se torna palpável. Eventualmente, solta-se uma gargalhada, mas importar-se, realmente, com qualquer um dos aventureiros, identificar-se emocionalmente com pelo menos um deles, revela-se uma tarefa definitivamente difícil. A relação de certa criatura com um parasita – que, ainda assim, levou-me a rir muito, tamanha é a deficiência do texto para a conclusão que recebe – talvez renda os momentos mais interessantes da animação, mas não a salva do seu status de regular a quase ruim.

Regular também é a orquestrada trilha sonora de Stephen McKeon. Apesar de saber quando se impor e quando se manter discreta, exceto por poucas variações do ápice melódico apresentado junto ao título do longa, não possui outros momentos marcantes em sua composição. No mais, é lamentável, e muito, que temáticas tão importantes quanto a da convivência com as diferenças, por vezes, sejam tratadas com tanta superficialidade quando dirigidas ao público infantil. Se bem que, como parte da superficialidade que perpassa, crescente, todo e qualquer gênero cinematográfico e mesmo as artes em geral, a diferença está apenas na embalagem.

Epa! Cadê o Noé? (Ooops! Noah is Gone), Alemanha / Bélgica / Irlanda / Luxemburgo – 2015
Direção: Toby Genkel, Sean McCormack
Roteiro: Toby Genkel, Mark Hodkinson, Marteinn Thorisson
Elenco: Dermot Magennis, Callum Maloney, Tara Flynn, Ava Connolly, Paul Tylak, Alan Stanford, Aileen Mythen, Patrick FitzSymons, Carla Becker, Franciska Friede
Duração: 87 min

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